Cry Macho – O Caminho para a Redenção (Cry Macho, 2021), de Clint Eastwood
Todo mundo ama cowboys e palhaços
Por Carla Oliveira e Sérgio Alpendre
Em Menina de Ouro (2004), o treinador de boxe vivido por Clint Eastwood confessa à atleta pela qual desenvolveu sentimentos paternais que poderia encerrar sua vida sendo proprietário de um restaurante de beira da estrada semelhante ao que ela o levou para provar uma torta de limão em meio a uma viagem pelas estradas estadunidenses na qual seus laços são estreitados. Na obra-prima As Pontes de Madison (1995), seu personagem, um fotógrafo errante e solitário, apaixona-se por uma mulher que lhe indica um caminho em meio à sua jornada, dança enamorado e faz planos de passar o resto de sua vida com ela. Trocando a especialidade da casa de torta de limão por tamales e as canções de jazz na voz de Johnny Hartmann pelo bolero “Sabor a Mi” (interpretado por Eydie Gormé, junto ao grupo mexicano Los Panchos), podemos dizer que, em Cry Macho, o personagem vivido por Clint Eastwood encontra um destino feliz.
Já nos anos 1960, antes de se tornar diretor, Eastwood construiu uma persona cinematográfica sólida, que procurou sistematicamente desconstruir com personagens fragilizados por algum motivo (Josey Wales, 1976, Bronco Billy, 1980, Firefox, 1982, Dívida de Sangue, 2002) ou de forte sensibilidade artística (Honkytonk Man, de 1982, servindo também como exemplo de fragilidade), ao mesmo tempo em que, movido talvez por um sentimento de criar um filme contra o outro, fortalecia a persona do homem sem nome e com passado sombrio em filmes como O Estranho Sem Nome (1973) ou Cavaleiro Solitário (1985). Nos anos 1990, ficou famoso o choro de seu personagem em Na Linha de Fogo (Wolfgang Petersen, 1993), e a desconstrução definitiva chegava com As Pontes de Madison.
Cry Macho, ao carregar características de personagens passados vividos pelo astro, é mais um filme-súmula do cineasta. Seu protagonista, Mike Milo, é viúvo, como o Will Munny de Os Imperdoáveis (1991) e o Kowalski de Gran Torino (2008). Do mesmo modo que o Frankie Dunn de Menina de Ouro, Milo também é um protagonista sem futuro, um fantasma esperando o momento de morrer. Como o jornalista Steve Everett de Crime Verdadeiro (1999), Milo também se encontra em descrédito na sua profissão. É craque nos cavalos, como em Bronco Billy. Se dá bem com animais, a exemplo do Philo Beddoe de Doido para Brigar… Louco para Amar (James Fargo, 1978) e Punhos de Aço (Buddy Van Horn, 1980).
Como outros personagens constituintes da complexa persona cinematográfica eastwoodiana, Milo é assombrado por fantasmas do passado. Era campeão de rodeio e teve um acidente que o afastou das arenas, conforme nos informam os quadros em sua parede. De sua vida pessoal, sabemos, por ele mesmo, numa bela cena noturna dentro de uma pequena capela, que teve uma esposa e um filho, ambos falecidos em um acidente de carro. Ele conta, com a voz embargada de incontida emoção, que bebeu muito para superar, e teve sua vida de volta quando o organizador de rodeios Howard Polk (o cantor Dwight Yoakam) o transformou em campeão.
Tempos depois, vivendo sua velhice com certa liberdade, sem “nada que valha a pena ser roubado”, mas solitário e sem grandes perspectivas, é procurado por Howard, que precisa de alguém para buscar seu filho no México. O menino, agora com 13 anos, estaria sob a guarda da mãe, uma caricatura de gangster latina que não deixa ele visitar o pai nos EUA. Por que um senhor de 90 anos seria a figura ideal para essa missão? Porque Howard conta com o imaginário do menino, que pode ser seduzido pela ideia de ser um autêntico cowboy (“everybody loves cowboys and clowns”, dizia a música em Bronco Billy na voz de Ronnie Milsap).
Milo atravessa com facilidade a fronteira entre os Estados Unidos e o México e percorre uma longa distância até chegar na capital do país, onde vivia o filho de Howard. Este percurso, traçado por ele de forma solitária, não parece ser transformador e nem mesmo divertido, como era para Earl, personagem de A Mula (2018), que cruzava a fronteira mexicana para transportar drogas ilícitas. O road movie, por excelência, desenvolve-se no trajeto de volta, quando Milo conta com a companhia do adolescente que deve conduzir aos EUA e do seu galo de briga Macho. Rafael se apresentou a Milo como um menino rebelde, desamparado, sem amor parental e vítima de abusos físicos praticados por um dos capangas de sua mãe. A estrada será para ele um espaço de amadurecimento e de desenvolvimento de intimidade em suas relações. Milo não lhe entrega seu chapéu de cowboy em um primeiro momento. Rafo, no princípio, trapaceia e até furta um carro. Lembramos de peripécias semelhantes cometidas pelo tio e o sobrinho em Honkytonk Man e mesmo entre o menino e seu sequestrador em Um Mundo Perfeito (1993).
O ponto de virada para Milo, no entanto, vai se dar quando ele decide fazer uma parada em uma pequenina cidade mexicana para tomar um café. Entra no restaurante de Marta, uma viúva que vive com suas netas. Ela havia perdido seu marido, filha e genro para uma doença infecciosa. Imprevistos fazem com que Milo, Rafo e Macho permaneçam mais tempo nesta localidade perdida. A relação de Milo com Marta e suas netas se estreita, e um dos maiores trunfos do filme é fazer-nos perceber esse estreitamento pela relação entre os olhares de Milo e Marta, como também da pequena neta com deficiência auditiva. Milo encontra um cavalo a ser domado e ensina a Rafo a sua arte. Sua proximidade com os animais faz com que vários moradores o procurem para obterem conselhos sobre as doenças de seus bichos. É quando Milo brinca que o estão confundindo com o Dr. Dolittle. Ele entende que poderia viver para sempre neste lugar, mas segue seu caminho até a fronteira para cumprir a missão de entregar Rafo a seu pai, sabendo, neste momento, que o interesse de Howard pelo menino é financeiro (quer barganhar ganhos da antiga sociedade com a mãe).
Cry Macho é um dos filmes mais simples entre todos os que Eastwood dirigiu. Essa simplicidade, contudo, não deve ser vista como um sinal de uma suposta falta de interesse, mas como uma vontade de ir à essência das coisas – a vida no campo, a proximidade com os animais, a revitalização por uma mudança radical (mudança de país, a constituição de uma nova família). Mesmo os obstáculos são facilmente transponíveis, sem as complicações que as tramas (ou os roteiristas) costumam inventar para amplificar conflitos e causar tensão nas plateias. Quase podemos dizer que o principal conflito de Milo é consigo mesmo, e ao que parece ele já está prestes a superá-lo mesmo antes de receber a missão. Obviamente a lembrança, a necessidade de voltar ao assunto, traz à tona velhos traumas, mas isso acontece com qualquer ser humano. Nossas dores podem ser superadas, mas jamais serão apagadas.
Simplicidade, aliás, sempre foi a tônica de Eastwood quando se trata de filmar. Cineasta da economia, de uma salutar preferência pela espontaneidade e por fazer poucas tomadas, Eastwood continua mestre na arte da concisão, por mais que seus detratores (mesmo que de parte de sua obra) pensem que esse é um atalho normalmente usado para salvar seus filmes mais fracos de um julgamento negativo. A concisão do cineasta está na maneira como ele domina o ritmo, algo que não está no roteiro, mas numa consciência do tempo de cada plano. Ajuda que Joel Cox seja seu montador mais frequente, aquele que melhor entende a linguagem eastwoodiana, e consiga cortar quase sempre no tempo certo, ajudando seus filmes a evitar ao máximo excessos sentimentais e o caos coreográfico nas poucas cenas de ação.
O galo de rinha Macho é o destaque nestas cenas de ação. É ele quem desfere o golpe contra o capanga enviado pela mãe na busca por Rafo. Milo até havia dado um soco no estereotipado personagem, mas sua expressão corporal é combalida, seu caminhar é envergado. Ele encontra a oportunidade de ensinar a Rafo que aquilo de ser macho é superestimado. Desiludido com a imagem dos pais, o menino, sem muitas expectativas, decide que quer se arriscar e cruzar a fronteira. Faz isto a pé e recebe, em terras texanas, um abraço desajeitado do pai. Há um lugar no norte mexicano onde ele sabe que será bem-vindo, o acolhedor restaurante onde dançam Marta e Milo.
* texto anteriormente publicado no zinematógrafo #30 (outubro de 2021)