
Depois de ter feito três textos para a Contracampo (*) sobre a carreira de Johnnie To até 2008, meio que perdi contato com a obra do diretor, tendo visto só Linger, Sparrow e Vengeance, e nenhum deles merece um alto posto num ranking de sua carreira. No processo de elaborar a lista dos melhores filmes dos anos 2010, acabei reservando alguns momentos para ver os filmes que ele realizou desde então, com a exceção de um, a continuação de Don’t Go Breaking My Heart, realizada em 2014.
Johnnie To sempre foi um diretor que se moveu dentro da indústria cinematográfica, com seus códigos e concessões comerciais. Foi muito hábil na utilização de clichês dos filmes de gangsters, do melodrama e da comédia romântica, incorporando-os de algum modo ao seu estilo.
Em seus filmes mais leves, nos quais a pressão comercial parece maior, a mocinha não pode ficar com o alcoólatra largado, por exemplo, a não ser que ele volte a ser um arquiteto bem sucedido. Nos filmes das tríades de Hong Kong, agora metamorfoseadas pela própria mudança de estatuto da região, há também suas concessões, mas as possibilidades de contorná-las parecem maiores. Também porque Johnnie To se movimenta melhor nesse gênero.
A crise de 2008 afeta diretamente os dois filmes de 2011, Don’t Go Breaking My Heart e Life Without Principles. Neste último, principalmente, a crise é a motivadora da trama, e o entroncamento da crise com os gangsters é estabelecido com habilidade por To.
O cineasta era irregular mesmo nos anos 1990, sua melhor fase, e assim continua. Nesta última década, temos Life Without Principles, Romancing in Thin Air (2012) e Office (2015), filmes que souberam se apropriar de um universo capitalista em que reina a lei do cão, mas também temos Blind Detective (2013) e suas cenas estúpidas que se alternam com boas sacadas visuais (e Andy Lau, sempre uma presença). Temos Drug War (2012) e Three (2016), com suas cenas de ação sublimes, e também Don’t Go Breking My Heart, com uma certa leveza adorável, mas que também é uma limitação.
O que me pareceu certo é que ele está ainda menos disposto a driblar as concessões ao cinema industrial de Hong Kong (e seu último longa, Chasing Dream, de 2019, parece paradoxal nesse sentido, porque ele parece tentar driblar mais do que em outros recentes, e ainda assim resultou em um dos mais fracassados de toda sua carreira).
É sabido que as condições de filmar foram piorando gradualmente após a área admnistrativa ter voltado a pertencer à China, o que explica o menor número de filmes desta última década. Mas To sempre foi, de algum modo, um contrabandista. Alguém capaz de inserir sua visão de mundo e de cinema em filmes insuspeitos. Nestes últimos filmes, há momentos que nada devem aos melhores longas que dirigiu: o tiroteio final de Drug War, a montagem paralela no clímax de Life Without Principles, a comunicação entre os prédios comerciais em Don’t Go Breaking My Heart, a polícia chegando no hospital com o criminoso ferido no início de Three (e a câmera no melhor estilo De Palma/To), o tiroteio em câmera super lenta mais adiante também em Three (melhor filme de To em muito tempo), o primeiro número musical de Office e sua apresentação de personagens e cenários super estilizados, o filme dentro do filme em Romancing in Thin Air.
O humor continua não sendo o forte de Johnnie To, mas tenho consciência de que o humor oriental nem sempre bate com o nosso, ocidental, e por vezes o que achamos vulgar ou escrachado demais eles acham espirituoso. Não é que somos superiores no humor, é que não temos condições de entender as particularidades dos costumes japoneses, chineses ou das províncias; por isso nem sempre é fácil acompanhar esse humor. No entanto, há limites, e Blind Detective, por exemplo, é frequentemente sem graça, apesar de algumas sequências brilhantemente filmadas (o que é habitual no seu cinema).
Os melhores desses filmes têm em comum a junção de dois mundos distintos: o mercado financeiro e os gangsters em Life Without Principles (mas esses dois mundos, no fundo, são um só, nos diz To), o hospital e a polícia em Three, a tendência ao isolamento e a busca da proximidade em Romancing in Thin Air (no qual os dois mundos estão travestidos de estados de espírito), o mundo corporativo e o musical em Office.
Johnnie To está com 65 anos. Ainda pode filmar muito, e muito bem. Se o último filme deixou um pouco de preocupação (pelo intervalo que o precedeu e pela falta de jeito), ainda é cedo para imaginar que ele esteja próximo a um ponto final de sua carreira. Ainda mais quando lembramos que os dois anteriores, Office e Three, são dos melhores que ele realizou.
* os textos da Contracampo:
http://www.contracampo.com.br/94/arttosergio1.htm