Benedetta (2021), de Paul Verhoeven
Dentro de uma perspectiva mercadologica, Verhoeven vai do gosto baixo ao gosto alto, de Jesus Franco a Dreyer, sem passar pelo gosto médio. É por isso que ele põe abaixo essa perspectiva e desconcerta um público que se ofende com tudo, mas não costuma se desconcertar com nada, pois o desconcerto se tornou parte do “circuito de arte” (essa expressão lamentável que Verhoeven torna sem sentido mais uma vez). Ainda não é um retorno à sua melhor forma, mas já dá para ficarmos mais esperançosos.
A Chorona (La Llorona, 2019), de Jayro Bustamante
Neste impressionante longa guatemalteco, o primeiro plano mostra uma senhora rezando. A câmera lentamente se afasta revelando outras mulheres ao redor, numa espécie de ritual. Esse mesmo procedimento será repetido algumas vezes no filme. Pode significar que Bustamante está falando de algo mais amplo do que uma história de feitiçaria. Quando essa abertura temática fica evidente, até pelo desenvolvimento da trama, ele faz o procedimento inverso, com a câmera se aproximando aos poucos de personagens que conversam, como se quisesse estudar esses burgueses contraditórios de visão fantasiosa do mundo.
De fato, os problemas de seu país são desnudados nesta trama que alia força estética à crítica política e social. A família de Enrique Monteverde (Julio Diaz), um ex-ditador acusado de genocídio do povo indígena (inspirado no ditador real Efraín Ríos Montt), é tratada com uma impressionante profundidade, em que a culpa burguesa pode dar os braços ao preconceito e ao medo do comunismo como em boa parte das elites mundiais. A interpretaçao de Julio Diaz é impressionante. Seu personagem por vezes parece realmente doente, em outras está perfeitamente são. Nas duas situações, ele fuma e persegue mulheres. Vale destacar todo o elenco, na verdade: a esposa de Enrique, a filha politicamente consciente (ou em vias de se tornar) e ao mesmo tempo temerosa de abandonar a boa vida burguesa, a empregada que desencadeia a vingança, a chefe das empregadas, até mesmo as crianças estão muito bem.
Num país com pouca tradição cinematográfica, embora tenha um primeiro filme de ficção já em 1912 e um sucesso autoral em O Silêncio de Neto (Luis Argueta, 1994), além de uma produção mais frequente na última década (Bustamante, aliás, é um dos responsáveis por isso), é impressionante que A Chorona seja filmado como se fosse de um veterano dos anos 1960, quase como um Marco Bellocchio latino-americano.
Tremores (Temblores, 2019), de Jayro Bustamante
Quando um homem de meia idade se assume homossexual, desestablizando a família e o meio em que vive, algumas reações homofóbicas surgem, mas também reações de despeito que se transformam temporariamente em homofobia. A surpresa da revelação pode fazer estremecer um ambiente construído dentro da lógica patriarcal heterossexual, o que tende a mudar no futuro com as novas configurações familiares tornando-se mais frequentes e conhecidas. Mas o diretor nos insere num ambiente evangélico, com suas crenças e preconceitos (como em qualquer comunidade muito religiosa e, por isso, limitada pelo fanatismo). Isto é o que move este Tremores, um longa quase tão bom quanto A Chorona, e que já mostrava, meses antes na cronologia oficial de primeira exibição pública, o cineasta como um nome a ser seguido.
Bustamante filma bem (pecado para parte da cinefilia) e filma a burguesia (outro pecado). Não qualquer burguesia, vale repetir, mas a burguesia evangélica e a ideia absurda de “cura gay” que transforma o protagonista em um zumbi. Se 50% do que narra em seu filme for real (quero dizer, não algo exagerado cinematograficamente), a sociedade guatemalteca é ainda mais podre que a brasileira, o que nos diz muito do que pode acontecer se o fascismo obscurantista continuar no poder por aqui.
Zeros and Ones (2021), de Abel Ferrara
Em This Sporting Life, o próprio Ferrara, num filme ensaio em formato diário, mostrava a Roma que adotou como morada totalmente deserta por causa da pandemia. Agora, faz um thriller dos mais estranhos e pós-apocalípticos num mundo de incertezas, rodado na mesma Roma deserta e escura. É um dos filmes mais enigmáticos de Ferrara. Seu maior parentesco é com New Rose Hotel, mas há diálogo com seus últimos filmes, sobretudo Siberia.
Sanctorum (2019), de Joshua Gil
Muito forte quando vai para a abstração dos planos hipnóticos à Herzog, ora causada pela distância e ângulo da câmera, como numa cena de execução, ora pela própria natureza e seus segredos; um tanto tocante, mas também mais próximo do comum quando está próximo das pessoas, exceto por alguns momentos que lembram o cinema de Apichatpong. De todo modo, um filme cheio de ideias, como se fosse uma estreia (mas é o segundo longa para cinema do diretor, após alguns telefilmes).