Olhar de Cinema 2021: Kamal Aljafari

Não conhecia os filmes do palestino Kamal Aljafari e me surpreendi ao encontrar um cinema de estética rigorosa, olhar arguto histórica e politicamente e uma boa capacidade de estruturação narrativa, incluindo aí um tipo de humor que tem ligeiro parentesco com o de seu colega palestino mais famoso, Elia Suleiman, embora seja menos provocativo, ainda que igualmente politizado.

Já no primeiro curta, Visite o Iraque (2003), Aljafari alcança humor e comentário político somente pela concatenação das entrevistas com moradores de um bairro em Genebra, sem a necessidade de explicitar seu viés por meio de narração ou letreiros, como tanto vemos no cinema contemporâneo.

O primeiro longa, O Telhado (2006), tem uma pegada mais contemporânea. Documentário observacional sobre questões como sentir um lar, que toca fundo em todo palestino e será o mote principal do cinema desse diretor. Os tempos, as angulações de câmera, as paredes, as ruas e os rostos compõem um painel de um não pertencimento. Sentimos o cotidiano pesado, a falta de perspectiva que não impede um resquício de esperança. Lembra um pouco, no tom e no desejo de entender seu contexto e como ele afeta as pessoas, o cinema brasileiro dos últimos anos.

Se o curta Varandas (2007) parece um tolo e arbitrário exercício em split-screen, o segundo longa, Porto da Memória (2008), é a cristalização da consonância entre tema e estilo no cinema de Aljafari. É o filme no qual os muros de seu cinema encontram os melhores ecos nas pessoas e no que elas falam. Trata-se de ter uma casa, numa primeira instância, e de ter um lar, num sentido mais amplo e apropriado, já que estamos em Jaffa, outrora uma cidade palestina, engolida pela israelense Tel-Aviv em 1950. O sentido de lar encontra num gato sua melhor expressão. Folgado em cima do pequeno terminal que está sobre o aparelho de TV, ele parece reagir às imagens de um filme religioso, o rabo batendo na tela e uma das patas caindo para cima da imagem. Momento singelo de um animal que gosta de ocupar pequenos territórios, apossando-se deles como os palestinos não podem fazer. Uma imagem símbolo do cinema desse cineasta.

De repente, um videoclipe se funde à trama, numa das sequências mais belas do cinema recente. Mas não é a única fusão entre imagens de fontes diferentes. Um filme de Chuck Norris (Comando Delta, do palestino Menahem Golan, 1986), rodado parcialmente em Jaffa, é exibido, primeiro na TV, acelerado, depois ocupando toda a tela, mostrando como Hollywood se serviu de um território para mostrar seus habitantes como vilões. Pela inteligência na apropriação de outras imagens dentro de um registro ficcional e documental ao mesmo tempo, Porto da Memória é o ápice do cinema de Aljafari até hoje.

A excelência de Porto da Memória faz Recordação (2015), seu longa seguinte, ser um tanto decepcionante, embora esteja longe de ser indigesto. Apropriando-se de imagens de filmes rodados em Jaffa, tornando-as fragmentárias, dentro de um formato mais experimental (no sentido básico mesmo, de experimentar com essas imagens), Aljafari não consegue dar um sentido maior à colagem em relação ao que ele já tinha mostrado antes: a representação de Jaffa, antiga cidade palestina, agora reduto palestino da cidade de Tel-Aviv, nas telas de cinema. Os momentos videoclipe e filme de Chuck Norris fundindo-se na narrativa de Porto da Memória dizia, de forma muito mais sucinta e poética, tudo que tenta este aqui em seus setenta parcialmente silenciosos minutos de duração. Na verdade, o melhor de Recordação está nos créditos finais, quando um belo e autobiográfico poema em prosa vai subindo na tela indicando as passagens dos outros filmes com lugares e pessoas que contavam sua história e a de seus antepassados.

Em seus dois últimos filmes, Aljafari investiga a captação. No curta It’s a Long Way to Anphioxus (2019), as pessoas que esperam algo que nem elas sabem o que é testemunham a dominação dos números, do digital. O cinema já era quase totalmente digital em 2019, da captação à exibição. Mas a que custo? O digital é fugidio, e por isso engana. No longa Um Verão Incomum (2020), o diretor aproveita a ideia de usar imagens de uma câmera de segurança para fazer cinema mudo. Na verdade, faz uma espécie de longa equivalente às vistas de Lumière. No lugar de um minuto, oitenta (curiosamente, é o filme mais longo de Aljafari). Nesse sentido, é um retorno de mais de 120 anos o que promove este diretor, mas na contramão do revisionismo kitsch de um Guy Maddin. O vídeo parece sujo, coisa dos anos 1990, cinema regressivo. As imagens seriam de 2006 e o cineasta aproveita também para fazer humor (com o homem das camisas azuis, por exemplo). É um filme curioso, centrado num conceito que ele explora até se esgotar. Porém, ao contrário do que acontece em Recordação, o poema autobiográfico em prosa que o encerra não joga a favor.

Já o cinema de Kamal Aljafari parece longe de se esgotar. Ele trabalha em duas frentes: o imprevisível e a repetição, com os dois últimos longas tendendo duplamente à repetição, tanto por um repetir o procedimento do outro como pelas escolhas internas de cada um. Outras dualidades aparecem: os números e as letras, a plasticidade e a sujeira nas imagens, o político e o banal, o desafiador e o ultrajante – por vezes um em decorrência do outro. Sempre sob um risco que por vezes o atropela. Mas é mais interessante, sempre, o artista que se arrisca.

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