
Antena da Raça, de Paloma Rocha e Luís Abramo
Dizem que Glauber era louco. O que é a mesma coisa de dizer que seus filmes são chatos. Ou seja, balela. Glauber parecia cada vez mais lúcido. Nos seus últimos anos, provavelmente com uma super lucidez que os conservadores, mesmo aqueles que se pintam de progressistas, costumam confundir com loucura. Tinha seus rompantes de loucura, como todo mundo. Mas era famoso, comprava brigas, então é mais fácil classificá-lo como louco.
As cenas do programa Abertura revelam a falta que Glauber fez no Brasil pós-ditadura, época da reconstrução democrática que nunca chegou a ser plenamente consumada. A falta que ele faz hoje. O filme de encerramento desta edição do Olhar, Antena da Raça, dá conta de sua personalidade explosiva e mostra no que se transformou o Brasil que sempre maltratou seus maiores gênios. Tudo é Brasil? Já não temos como saber.
Com esse assunto, o filme obviamente se torna muito bom de ver. Não temos como ver figuras como Glauber Rocha, José Celso, Helena Ignez e Caetano Veloso em cena e não sentir imenso prazer no contato com a inteligência e o talento livre desses artistas. Mas entrar com um time recheado de craques não significa que o jogo está ganho. Logo, o trabalho de Paloma Rocha e Luís Abramo é organizar esse material da melhor maneira possível. O que eles fazem nesse sentido é criterioso. Com a ciência de que têm um material de ouro em mãos, tratam de fazer com que nossa experiência seja a mais instrutiva possível, admitindo até os erros de Glauber (como entrar na onda de Antônio Carlos Magalhães, por exemplo, ainda que naquele momento fosse até desculpável). Quem não erra, afinal?
Cenas de filmes (incluindo o português Adeus às Armas, no qual Glauber tem uma participação crucial), do programa Abertura, do aniversário de 40 anos de Glauber, material de arquivo muito bem estruturado, juntam-se às entrevistas atuais e às cenas trágicas das manifestações da classe média com a camisa da seleção brasileira: a conexão com o hoje nos dá a dimensão da tragédia deste ex-país chamado Brasil.
Longa Noite, de Eloy Enciso
Se insistirmos na separação entre forma e conteúdo para situar na forma tudo que um cineasta deve atentar, Longa Noite é um filme bem sucedido ao imitar a forma dos filmes de Straub-Huillet (na primeira meia hora) e de Pedro Costa (nos dois terços finais). Porque imita razoavelmente bem, com algum espaço para uma ou outra diferença, e consegue adequar o tema – excluídos da festa do franquismo espanhol – a essa opção formal. Mas se assim fosse, reduziríamos o cinema a uma ciência exata, bastando dominar uma forma já dada para reproduzir um sem número de grandes filmes. Clement Greenberg insistia que isso não é possível, mas sempre tem aspirante a cineasta que recorre a essa possibilidade e entra pelo cano.
A forma é essencial, ao contrário do que querem os arautos da mensagem e da ideologia. Porque é mais fácil analisar um filme por seu discurso do que por sua forma, então esses arautos sempre se multiplicam como coelhos. O discurso está ao alcance de todos, a forma requer estudo. Ao mesmo tempo, a forma não é tudo, embora seja (ou devesse ser) muita coisa num filme.
No caso de Pedro Costa, sentimos com os personagens por meio da maneira rigorosa com que ele os filma, os envolve nas sombras. Há também um desenho de luz coerente com a falta de perspectivas de seus excluídos. Longa Noite não consegue tanto. Mesmo a mulher que reclama do pedreiro que ajuda na restauração de um quartel e com isso ganha nossa simpatia, em seu longo monólogo, minutos depois, parece se perder, ou nós nos perdermos dela, a ponto de, pela duração, o filme ficar comprometido. Não ajuda que o longo monólogo seja filmado de uma forma um tanto convencional, apostando apenas na duração e na gravidade do que é dito, em discordância do estilo adotado ao longo do filme. Esse monólogo, de fato, é o ponto crucial em que o filme quase se perde. Não por acaso, está mais ou menos na metade. No conjunto, lembramos do filme de maneira ligeiramente positiva, justamente porque a forma é bem cuidada. Mas faltou cuidar mais do todo, para além das óbvias referências.
O Ano do Descobrimento, de Luís López Carrasco
López Carrasco usa o split screen para acentuar algo que já estava presente no cinema de Robert Altman: a polifonia de vozes. Fala da Espanha, de sua história, e de Cartagena (no sudeste do país), de acontecimentos de 1992 (os conflitos trabalhistas da cidade, as Olimpíadas de Barcelona, o aniversário do descobrimento das Américas pelos espanhóis). Mas fala principalmente do contraste entre o que se quer mostrar e a essência de um país como todos os outros, que sofre os efeitos do capitalismo selvagem em voga desde fins dos anos 1980 (a falência dos ideias utopistas dos anos 1960 nas décadas seguintes e o colapso do bloco soviético permitiram a selvageria).
A maneira que encontrou para falar desses efeitos é conversar com as pessoas, de preferência em mesas de bar. Quase sempre em split screen, acompanhamos as conversas ou do lado esquerdo ou do direito (não percebi alguma conotação política nessas escolhas). Por vezes, um dos lados mostra algum conflito ou alguma reportagem da TV, ou mesmo uma tela preta. A história da Espanha é passada a limpo de uma maneira bem curiosa.
Como nos filmes de Altman, por vezes a opção da polifonia cansa. E o filme de Carrasco tem mais de 3 horas de duração. Talvez precisemos de mais intimidade com a Espanha para apreendê-lo melhor. Talvez tenha de ser visto em dia e circunstância ideais. O certo é que, exceto por uma ou outra fala, não me tocou, infelizmente.
Em seu 40 Dias para Aprender Cinema, atração da última edição do É Tudo Verdade, Mark Cousins propõe cortes de meia hora em Limite (Mário Peixoto, 1931) e uma história inteira das quatro de Kwaidan (Masaki Kobayashi, 1964). Isso, pelo que percebi, desagradou os críticos mais facilmente ofendidos, aqueles que dizem que não se pode censurar a duração dos filmes, geralmente os mesmos que dizem que é preciso julgar cada obra de acordo com sua proposta. Bom, eu amo Limite e Kwaidan. São dois dos filmes mais belos que conheço. Não vejo problema algum na duração deles. E não imagino que história de Kwaidan tenha desagradado o crítico. Mas não me senti ofendido pelo que ele disse. Só achei graça, a graça de quem discorda respeitosa e frontalmente. Esta digressão é para dizer que penso o mesmo de O Ano do Descobrimento: uns 40 minutos a menos lhe fariam bem.
Visão Noturna, de Carolina Moscoso Briceño
A partir de uma experiência traumática, a diretora propõe um experimento visual calcado na memória e em novos encontros, com alguns planos interessantes e letreiros intermediando o relato. A violência contra as mulheres continua implacável, geralmente por efeito de masculinidades ofendidas. Continua também a ideia de que o tema é tudo em cinema. E, com isso, perdem-se oportunidades. Menos porque o filme ignora as possibilidades estéticas do que por não se esforçar para encontrá-las. Pois é preferível o procurar ao ignorar. Ao parecer acreditar que o tema é tudo, ou o mais importante, o centro do filme se torna a denúncia, não a busca de uma força cinematográfica que enfatize a denúncia. Isto parece secundário. E assim, o discurso nos revolta, mas a forma quase nos leva a um apaziguamento. Talvez seja essa a intenção, para salientar que a vida continua, afinal.
O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador (1967-2020), de Raul Ruiz e Valeria Sarmiento
Filme considerado perdido, reencontrado recentemente numa cópia sem som e terminado, ou seja, com som gravado a partir das leituras labiais dos atores, e montado pela viúva de Raul Ruiz, Valeria Sarmiento. Ruiz filmou muito e deixou com que o tempo separasse os bons filmes dos maus. Teve uma grande fase entre finais dos anos 1970 e meados dos anos 1980, quando tudo que filmou é de alto nível. Nos demais períodos, alternava obras-primas ou quase com filmes enfadonhos ou mesmo equivocados, além de uma enorme gama de valores entre um e outro. Este seu primeiro longa chileno parece antecipar a fase maneirista do início dos anos 1980 ainda mais do que Tres Tigres Tristes (1968). O realismo mágico que tanto marcou a América Latina encontra muito espaço neste filme em que há cabelos rastejantes atormentando os personagens, fantasmas vingativos, congelamentos de imagens ou mesmo stills inseridos no meio das cenas em movimento. Por fim, o filme é exibido de trás para a frente a partir de certo ponto (incluindo a banda sonora), mas com algumas diferenças e com imagens de ponta cabeça no meio do returno (o tal espelho deformador). É o fantasma da liberdade, numa toada semelhante à de Nagisa Oshima em Três Bêbados Ressuscitados (1968). O quanto de tudo isso estava no filme original pensado por Ruiz não temos como saber com precisão, mas imagino que o filme tenha ficado muito parecido com o que Ruiz queria, uma vez que o trabalho de Sarmiento parece bem talentoso e o resultado final, convincente.
FOCO DANIEL NOLASCO
Um começo tímido em longas (Paulistas, 2017) não permitia imaginar o que viria pela frente (Vento Seco, 2020), passando por um documentário que investiga o fetiche pelo couro (e a entrada no universo homoerótico em Mr. Leather, 2019). Os três longas de Daniel Nolasco exibidos no Olhar refletem uma busca pessoal pelos limites da representação (da vida no campo, dos fetiches e do sexo explícito).
Pessoalmente, não sei bem o que pensar das representações de sexo explícito no cinema dito autoral (ou mainstream, dependendo de onde se olha). Há o caráter provocador, que quase sempre é positivo. Mas aí vejo o que um Gaspar Noé faz com isso e bate o desânimo. Michael Winterbottom também não soube explorar essas possibilidades e fez um filme (29 Canções) que consegue ser enfadonho mesmo contendo cenas quentes e muito soltas de sexo explícito (algo como um casal de verdade sendo flagrado por uma câmera escondida, mas com possibilidades de angulações ousadas). Lars Von Trier causou muito em Ninfomaníaca, mas pouco fez. Por outro lado, há exemplos positivos de sexo explícito em bons filmes: Change Pas de Main (Paul Vecchiali, 1975), Uma Adolescente de Verdade e Romance (ambos de Catherine Breillat, 1976 e 1998), Oh! Rebuceteio (Claudio Cunha, 1983), O Silêncio do Lago (Alain Guiraudie, 2014), entre outros títulos não lembrados e outros ainda que reservam pequenas cenas para o explícito, como Brown Bunny (Vincent Gallo, 2003), O Diabo no Corpo (Marco Bellocchio, 1986), Fantasma (João Pedro Rodrigues, 2000) ou Batguano (Tavinho Teixeira, 2014). No caso do sexo explícito homossexual, há a provocação maior da afronta à heteronormatividade, o que é também um dado a ser considerado. Mas não é isso que faz de Vento Seco (e de Mr. Leather) um bom filme, pois não basta ser provocativo para ser bom. É, sim, a estrutura bem pensada pelo diretor, entre a fantasia e o delírio; a consciência da hora de fazer enquadramento estilizado e a hora de pensar em uma câmera menos controlada; a força com que o desejo pelos corpos e a rejeição – envergonhada ou cautelosa – a esse desejo são flagrados pela câmera.
Que o protagonista de Vento Seco, chamado Sandro, pareça um personagem de Fassbinder (não só pela homossexualidade, mas pelo biotipo e pelos olhares que lança aos outros), só reforça a semelhança entre a poética de Nolasco e a de Fassbinder, o que por si só já é um baita elogio, pois não estamos falando aqui de emulação, mas de herança (também a de Jacques Nolot, a meu ver) e de adoção de procedimentos estilísticos semelhantes (o neon, os movimentos de câmera maneiristas, os corpos estáticos), que os momentos de quase naturalismo atenuam, e às vezes enfraquecem um pouco. Por outro lado, esses momentos mais naturalistas (não me refiro tanto às conversas entre Sandro e algum outro personagem, mas aos momentos no supermercado, por exemplo, ou nas festas) funcionam como fugas, momentos de descanso antes que a estilização volte. Neles, aliás, há opções de enquadramento que Fassbinder jamais realizaria (ao menos dentro desse registro), com personagens sonegados pelo enquadramento e centralização do quadro em apenas um deles, mesmo quando tem dois ou três em cena, ficando um deles parcialmente cortado pelo limite do quadro. Outras referências interessantes, reforçadas por Nolasco em debates, são as de Scorpio Rising (1964), um dos melhores filmes de Kenneth Anger, e Boys in the Sand (1971), de Wakefield Poole (referenciado na série The Deuce, e de forma mais indireta em O Estranho no Lago). O efeito do couro, a ideia de dominação e fetiche no primeiro filme, a natureza e o sexo indomáveis no segundo. Não vi Boys in the Sand, mas vi o video que Daniel Nolasco disponibilizou sobre as referências usadas em Vento Seco e é mesmo impressionante a semelhança alcançada. Funciona como homenagem ao filme de 1971.
Dentro da estrutura proposta por Nolasco em Vento Seco, os dias se tornam cada vez mais secos, o que parece alterar a propensão ao sexo mais livre e descompromissado. É justamente aí que está o problema do protagonista. Ao rejeitar aquele que o fez feliz no sexo, e que claramente queria algum tipo de vínculo, em favor de um romance platônico até então mal resolvido, envolvido em certa idealização (o plano no brinquedo do parque é bem bonito), Sandro sofre porque perde o bonde do prazer, como também um laço afetivo, e se entrega a pequenas maldades como riscar o carro daquele que rejeitou, mas que por sua vez conquistou o objeto de seu desejo. O ménage no final é esperado, mas a previsibilidade não altera a beleza do encontro dos corpos sedentos por sexo.
Dizem que Vento Seco é o primeiro longa de ficção de Nolasco, mas tenho dúvidas de que Paulistas se acomode tranquilamente no documentário e mesmo que Mr. Leather possa assim ser chamado. Porque ambos não parecem confortáveis em categorizações definitivas. São mais livres, ensaísticos. O que eles têm de documentário, Vento Seco (e várias outras obras de ficção) também tem, ainda que em menores doses. Melhor seria dizer que esses longas de Nolasco são ensaios com maior ou menor grau documental. A necessidade de classificação é que os faz serem documentários.Mr. Leather tem um lado didático que o situa um pouco mais no documentário. As entrevistas o aproximam do convencional e servem para entendermos melhor a cultura leather, muito mais forte no Brasil de hoje, e com décadas de história no mundo. Mas Nolasco coloca no filme boa dose de onirismo e invenções narrativas (no início, principalmente), o que fazem dele um treino para a entrada na ficção propriamente dita do longa seguinte. Isso pode soar como se Mr. Leather servisse apenas como passagem para Vento Seco, ou que um documentário seja sempre inferior a uma ficção. Não é o que tenho em mente. Sua limitação é justamente essa necessidade de fazer entender a prática, inclusive ao mostrar um concurso para escolher o Mr. Leather Brasil, credenciado para se tornar o Mr. Leather internacional. Esse concurso é o centro do longa, o que o deixa com cara de reportagem (ainda que uma boa reportagem e com inserções de alguma invenção). Essa limitação não existe em Vento Seco. Tanto a ficção quanto o documentário e os inúmeros filmes que trafegam entre um e outro sem se sentir confortáveis em nenhum deles apresentam seus riscos. É possível dizer então que Vento Seco ultrapassa com mais facilidade os riscos inerentes a cada opção estética e temática, o que dá a entender um bem-vindo progresso de Nolasco como diretor.