Uma palhinha necessária sobre os curtas vistos aqui em São Miguel do Gostoso. (O média Sete Anos em Maio foi comentado em outro texto).
O melhor me pareceu Quebramar (foto), de Cris Lyra, em que um grupo de jovens lésbicas se reúne numa praia tranquila para relaxar e resistir ao mundo cada vez mais machista que encontram, apesar de algumas conquistas. Por meio de recortes de seus corpos, dos cabelos e das metades de rostos que por vezes formam o enquadramento, o filme parece procurar, a seu modo, uma identidade, e também um lugar pacífico no mundo. É interessante que tenha passado antes de um outro interessante filme de procura, o longa Fendas. Por mais que a procura seja um motivo frequente no cinema, poucos filmes dão voz à procura de modo tão contundente, especialmente pelo aspecto formal, quanto Quebramar. Um filme que aposta em deixar pontas soltas e funciona bem dentro desse registro, o que não é fácil. Essas jovens têm suas identidades o tempo todo questionadas. Elas sabem muito bem quem são, como querem viver e como querem amar. Mas a sociedade as empurra para um questionamento incessante de suas possibilidades. Vê-las em comunhão é tão gostoso quanto a risada solta de uma delas.
Juliana Antunes virou uma celebridade no circuito do novíssimo por seu irregular longa Baronesa. Em Plano Controle, exercita um pouco do humor tosco de alguns programas de YouTube, mas não posso dizer que se saiu bem. As voltas ao passado, com o respeito ao formato e às qualidades da imagem de cada época, são interessantes, mas cansam rapidamente (o que assusta, num curta de apenas 15 minutos). O comentário político também me soou um tanto infantil.
Marie, de Leo Tabosa, tem 25 minutos, mas ao contrário de Plano Controle, não cansa tanto. O que não quer dizer que seja melhor. A história de dois amigos de infância que se reencontram para um enterro tem um único momento empolgante que é o pedido de desculpa de Estevão (Rômulo Braga) para Marie (Wallie Ruy), provavelmente porque Estevão não aceitou tão bem a decisão de seu amigo de se tornar mulher (embora isso só seja verbalizado na tangente). No restante, a toada segue sem grandes cenas, mas também sem nada que tivesse me desagradado. É um curta que precisa do banho-maria para tornar potente o pedido de desculpas. Essa é sua limitação.
O potiguar Em Reforma, de Diana Coelho, tem sua força num certo naturalismo alcançado, mas a atriz principal precisava de um outro tratamento, provavelmente não naturalista, ou até anti-naturalista (na linha Straub-Huillet), porque não é fácil impor esse naturalismo em todo o elenco. A filha, por exemplo, se dá muito bem dentro desse registro, o que acentua a diferença das atuações. Não se trata de dizer que uma é melhor atriz que outra, já que só as vi neste único curta. O que importa, no caso, é entender o que se pode fazer com o elenco escolhido e o que se deve contornar.
O outro curta potiguar é um documentário. A Parteira, de Catarina Doolan, nos apresenta Donana, mulher de personalidade forte e crítica. O documentário é a porta de entrada natural para cineastas jovens, pois o risco da direção de atores dentro de um registro naturalista é minimizado ao máximo. Temos apenas a atuação das pessoas diante da câmera, uma atuação que diz respeito a certa verdade, mais do que a uma construção narrativa. A narrativa, por sua vez, é conduzida pela verdade que vem das pessoas. Mas ainda há o risco da má encenação, da colocação da câmera em lugares errados, da falta de ritmo ou de um desequilíbrio no tom (além de milhares de outros problemas que porventura surjam nas filmagens). Nesse quesito, o curta também se sai razoavelmente bem, tornando-se, após Quebramar e o média Sete Anos em Maio, o terceiro melhor da competitiva de curtas.
Entre os curtas do coletivo Nós do Audiovisual, deu novamente para sentir um agradável progresso, e é bom notar que está cada vez mais curta a distância entre esses curtas e os da competitiva. Diria até que Ando me Perguntando, apesar de sua irregularidade e de um final que ousa por não deixar tudo tão didático, mas simplesmente não funciona porque não foi bem encenado, perderia apenas para Quebramar e Sete Anos em Maio, na competição. O melhor dele é o aspecto cômico, que fez as crianças que estavam ao meu lado gargalhar em uma cena específica. Carta Branca tem certo interesse instantâneo, mas suas imagens foram logo esquecidas por causa da chegada de Sete Anos em Maio, o filme de encenação mais forte de toda a Mostra (esses curtas do coletivo se beneficiam porque passam antes em uma sessão que tende a chegar às 3 horas de duração, fora as apresentações, mas há sempre esse risco do esquecimento). Por fim, Júlia Porrada é o mais forte dos curtas do Coletivo. Além de ter nível para não fazer feio na competitiva, o curta tem como personagem-título uma senhora que é um verdadeiro achado, uma benção para qualquer documentarista. O risco era fazer dela um objeto de escárnio, ou deixar que a personagem leve o filme nas costas sem se preocupar com a forma (erro bem frequente em diretores inexperientes). Tudo isso foi evitado em uma direção correta, que alterna rigor com soltura de câmera à medida que vai destrinchando a sabedoria de Júlia Porrada. Infelizmente não vi Labirinteiras. Lamento.