Alvorada

Eis um filme que já nasce sob uma divisão pré-determinada. Captura o momento em que Dilma Rousseff, então em seu segundo mandato como presidenta, aguarda a confirmação pelo senado de seu processo de impeachment. Antipetistas já odiaram antes de ver, e provavelmente nem irão ver, desconfiados de uma “panfletagem esquerdista”; petistas ferrenhos se emocionarão, mesmo que não amem o filme de todo ou se decepcionem com algumas opções das diretoras. Os demais podem variar entre um sentimento e outro, dependendo da maneira como entendem a história recente do brasil, a destruição de um país fadado a ser a vanguarda do atraso. Tentar ver o filme sem qualquer condicionamento prévio é algo impossível neste país apodrecido politica e culturalmente. Ao mesmo tempo, é necessária uma certa frieza de análise crítica, que leva em conta também os aspectos formais de uma obra, o que parece praticamente em extinção – essa condição tendo a ver com o apodrecimento, obviamente.

Pois Alvorada, dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi, tem seu interesse inegável para quem acompanha a história recente do país, e a partir desse interesse deve deixar bem incomodado quem reivindique ao menos alguns atributos cinematográficos em um filme, um mínimo de valor estético. Mas os tempos em que panfletos políticos tinham força estética foram-se há pelo menos 40 anos, sobrando, de lá para cá, poucas exceções.

Pensando então não somente no que Alvorada nos mostra, mas principalmente em como nos mostra, chegamos à conclusão de que o filme fracassa. Não mostra a que veio, mesmo quando comparado ao problemático, mas de longe mais interessante Democracia em Vertigem. No longa de Petra Costa temos uma ideia que incomodou muitos cinéfilos, mas está ali, de cabo a rabo, desenvolvida minimamente, e coerentemente. No de Muylaert e Politi temos um apanhado de imagens já vistas, agora em um outro ângulo, não necessariamente mais interessante, e algumas imagens nunca vistas que parecem aleatórias. Filmou-se o que deu, e como não deu muito, montou-se com o que tinha para montar.

Documentário ou filme de terror? Por mais batido que seja o deslocamento de gêneros para dar conta da realidade monstruosa que se desvela na frente das câmeras, o filme já começa parecendo a segunda opção, com a voz do enviado do mal votando sim pelo impeachment, evocando torturador e Deus (?) acima de todos, esse deus do bozonazismo, que glorifica milicianos e aprova torturas e assassinatos de opositores. Um deus com d minúsculo para um brasil com b minúsculo como o que temos no momento. Depois começamos a ver o cotidiano do Palácio do Planalto como se não fôssemos convidados a esse passeio.

Uma opção então me parece equivocada de saída: fazer com que a câmera pareça o tempo todo invasiva, mesmo quando não há qualquer sinal de que estejam filmando à revelia ou mesmo com alguns senões da presidenta. Ela geralmente avisa a equipe quando não quer ser filmada, e a equipe acata sem contestação, deixando evidente a recusa de Dilma, que, negando alguns registros em cena, parece mais a verdadeira diretora do filme. Não se trata de negar, a priori, a câmera tremida ou documental. Ao contrário do que alguns pensam, essa negação não existe de minha parte. Trata-se, sim, de entender como a câmera indecisa e imprecisa nos ajuda a entrar ou não no filme, ou mesmo a apreendê-lo como um filme ou como um registro amadorístico de uma derrocada política – a da esquerda brasileira. Percebemos como a opção é equivocada quando comparamos o filme ao City Hall de Frederic Wiseman. Ali a câmera é pensada, houve uma profunda elaboração do como filmar e do que seria enquadrado em cada plano. O pecado de Wiseman é achar que um filme de quase quatro horas seria o tempo todo forte para quem não é de Boston, e obviamente ele teve muito mais acesso aos bastidores que Muylaert e Politi. Ainda assim, pensando nas cenas que as diretoras puderam filmar, havia a possibilidade de pensarem melhor no comportamento da câmera, para que esta não fosse um ruído desagradável à nossa visualização.

Isto não quer dizer que Alvorada seja totalmente desprezível. Como quase sempre acontece quando há algum cuidado mínimo com o que se faz (e talvez o cuidado aqui tenha sido realmente mínimo), algo também pode ser aproveitado. Neste filme, algo do registro do cotidiano daqueles que trabalhavam no Palácio do Planalto, as trocas de móveis, a investigação da cor da água, as pesquisas da equipe para um discurso, aqueles que jamais aparecem nas telas a não ser em posições de subordinação, revelam algum interesse dentro de um todo pouco convincente. Tem ainda a lembrança de que Dilma é uma pessoa inteligente, mas era também, ao menos enquanto presidenta, um tanto grosseira (isso fica claro numa cena com Mercadante). Convenhamos que não é muito a se reter em 82 minutos de filme.