Minha infância, nos anos 1970, foi marcada pela adoração dos discos de Roberto Carlos dos anos 60. Demorei para entender, e adorar, o disco da praia, de 1969, hoje um dos meus preferidos (junto aos de 1972 e de 1974).
A febre Roberto Carlos foi substituída naquele momento pela aquisição dos primeiros LPs internacionais – as coletâneas azul e vermelha dos Beatles e Flowers, dos Rolling Stones. Isso em 1980, ou 1979, talvez. Paralelamente, ouvia e gravava o que mais gostava da programação da Rádio Cidade (The Police, Elton John, Chiliwack, entre outras coisas da passagem de uma década a outra) daqui de São Paulo.
No comecinho de 1981, ganhei o meu primeiro disco do Queen: The Game, que era o disco do momento. Fui devidamente convertido, ainda na pré-adolescência. Logo em seguida, meus pais me compraram A Night at the Opera, e eu passei a lamentar não ter idade para ir a um dos shows deles no Morumbi. Um amigo meu, dois anos mais velho, ou quase isso, foi, e me deixou cheio de inveja pela primeira vez na minha vida (porém, nunca tive inveja dos brinquedos caros dos meus amigos de infância – sempre preferi as brincadeiras de rua, jogar bola, tirar massinha de casas em construção e brincar de polícia e ladrão).
A adoração isolada ao Queen durou mais ou menos um ano e meio, quando descobri o rock básico e infantil do AC/DC e do Kiss. Daí para coisas mais pesadas foi um pequeno pulo: Iron Maiden, Judas Priest, Saxon, etc. Adorava Led Zeppelin, Black Sabbath e Deep Purple também. Penso que comecei a gostar dessas bandas obrigatórias na mesma época. Ou junto com AC/DC e Kiss, não lembro ao certo. Ia ao centro da cidade, que era muito mais seguro em 1982 que qualquer lugar de São Paulo hoje, e voltava com um ou dois discos debaixo do braço, dependendo do tamanho da mesada, preocupado com o sacolejar do ônibus e as empurradas dos adultos.
O certo é que minha paixão pelo Queen nunca deixou de existir. Pode ter sido eclipsada, de tempos em tempos, por alguma (re)descoberta momentânea. Mas era só botar pra tocar e relembrar a genialidade de Freddie Mercury, Brian May, John Deacon e Roger Taylor.
Com tudo isso, parecia impossível assistir a Bohemian Rhapsody, de Bryan Singer, e não ficar emocionado. A simples tentativa de se biografar no cinema a aventura desses quatro geniais estudantes que despontaram para o estrelato pela incrível musicalidade e pelo carisma de seu vocalista já parecia capaz de me fazer ao menos esperar o filme com alguma ansiedade.
Não que eu esperasse algo bom. Na verdade, achava bem difícil que isso acontecesse. Biografias musicais raramente funcionam no cinema, ainda mais numa Hollywood tão presa a fórmulas de sucesso. A questão é simplesmente ver na telona a cinebiografia de uma de minhas bandas do coração. Imagino que foi isso que sentiu meu grande amigo Alexandre Carvalho quando saiu The Doors, do Oliver Stone, outra cinebiografia fraca.
O filme é tido como uma cinebiografia de Freddie Mercury (o principal compositor da música “Bohemian Rhapsody”). Dada a ligação do cantor com a banda, e apesar do retrato morno que se faz dos outros três integrantes, cabe mais como uma cinebiografia do Queen (e talvez o oposto tenha acontecido com o filme de Stone).
News of the World
O problema não é bem a vazão exagerada ao sentimentalismo. A música do Queen, principalmente a partir de 1980, presta-se a isso. Não foi isso que me deixou emocionado, contudo, mas a beleza das músicas, a ideia por trás de cada composição, ideia que o filme deixa entrever mal e mal por trás das máscaras hollywoodianas colocadas em cima dos compositores, e uma certa imaginação de bolha na cronologia dos eventos (bolha é o fã de discos, segundo outro grande amigo, o Bento Araujo).
E é nessa cronologia que mora o maior problema do filme para um bolha. Porque ver uma turnê logo após o lançamento de A Night at the Opera, com um show no Rio de Janeiro em que todo o público canta “Love of My Life”, não é algo legal para quem espera um retrato mais fidedigno da evolução da banda. Bem, o disco é de 1975 e eles só fariam show no Rio em 1985, no Rock in Rio, tendo feito dois shows em São Paulo em 1981, transmitidos pela Bandeirantes, que flagrou a plateia cantando “Love of My Life” no lugar de Mercury.
Até aí, problema menor. Imaginemos que a força dramática daquela cena ali, ainda num relativo começo de carreira, tenha sido melhor para as pretensões comerciais do filme. Mas colocar, cenas depois, Brian May compondo “We Will Rock You” porque ficou entusiasmado com a participação da plateia, aí já é demais. Até aceito que alguma plateia tenha cantado junto “Love of My Life” antes de 1977 (quando “We Will Rock You” saiu). Mas não uma plateia enorme como as que eles tiveram no Morumbi ou no Rock in Rio. É liberdade poética demais para um bolha.
Na primeira turnê americana da carreira deles, que aconteceu em 1974, para promover Queen II, eles tocam “Fat Bottomed Girls”, de 1978 (do disco Jazz). Não consta nos autos que eles tocassem essa música em 1974, nem que eles já a tivessem composto. Não fazia muito sentido, aliás, essa letra sacana na fase em que eles estavam. Mas OK, a música ilustra bem uma faceta da banda. Que tenham adiantado seu surgimento em quatro anos não me parece motivo para queimar o filme.
Como antes de ser bolha, sou um crítico de cinema (não o “antes” de passado, mas o “antes” do exercício das funções, pelo menos neste blog), esse desprezo com a cronologia seria um problema menor se a narrativa se comportasse bem com ele. Mas a impressão é de que a narrativa independe dessas coisas, e só se tirou tudo da ordem por preguiça ou pressa de roteirista.
Incomoda também que essas figuras essenciais do rock setentista sejam retratados como personagens de enredos baratos. Brian, Roger e John são os roqueiros de classe média, presos às famílias e a uma ideia de educação britânica por vezes quebrada pela postura de contestação que costumava existir no rock da época. Freddie, elemento claro e postiço de contraposição dramatúrgica, é a energia que se recusa a ser represada, e conforme vem a fama ele vai mais e mais decaindo num estilo de vida louca que, sabemos de tantos outros filmes, inclusive das duas últimas versões de Nasce uma Estrela, que não leva longe. E aí os quatro deixam de ser músicos talentosos e ousados para serem meros elementos de um enredo melodramático que se prende demais a uma fórmula de redenção (o show do Live Aid em 1985), que por sua vez se presta lamentavelmente bem (comercialmente falando) a retratos de artistas talentosos e problemáticos.
E se tudo é fórmula, o filme respira melhor nos raros momentos em que, como a própria banda ousou fazer nos anos 70, dribla essa fórmula gloriosamente: os momentos em que eles são vistos no estúdio, com os técnicos ou discutindo e vibrando entre eles, ou quando Rami Malek consegue tirar Freddie da redoma e age como uma pessoa, não como o retrato de uma estrela decadentista – o momento da briga pela entrada ou não de “I’m In Love With My Car” na obra-prima A Night at the Opera, por exemplo, ou na reunião em que convence os executivos da gravadora a gravar esse mesmo disco, cuja concepção é considerada ousada pelos engravatados.
Gosto também de como é mostrada a relação de Freddie com sua melhor amiga e antiga namorada, Mary Austin. Sei que atende às exigências da fórmula que tanto critiquei. Mas os desempenhos de Malek e de Lucy Boynton escapam das convenções e nos entregam alguma verdade.
Verdade mesmo, só a bela música dessa banda sem igual. E essa música, bem ou mal, está em Bohemian Rhapsody. É o que permite que o filme seja facilmente assistível mesmo que nosso julgamento não seja favorável.