Sonhos de Damasco (Damascus Dreams, 2021), de Émilie Serri
No começo, parece que veremos mais um filme com imagens domésticas sendo recontextualizadas, a exemplo de Estilhaços e Rumo ao Norte. Poucos minutos depois, parece que na verdade estamos diante de mais um filme de depoimentos sobre o passado, no caso, da Síria, pátria em comum dos entrevistados. E então o filme nos dribla novamente e mostra belas fotos em preto e branco de um passado tão distante em Damasco.
O sentimento de exílio, obviamente, é forte, e tinge o filme com uma melancolia indelével. Mas não é o saudosismo que dá o tom, apesar de estar bem presente. É mais um sentimento de revolta incontida, porém administrada pela narrativa. O grande trunfo do filme é que ele se recusa a aderir totalmente aos registros da moda, sempre procurando subvertê-los pela invenção, pela impossibilidade de sabermos o que virá a seguir. Não se trata, é bom dizer mais uma vez, de condenar a previsibilidade de saída, uma vez que muitos dos filmes previsíveis podem também ser muito valiosos. Trata-se de reconhecer uma aptidão para intercalar imagens de muita beleza, como aquelas da neve, com as emotivas, domésticas, e também com as fotos em preto e branco. O andamento do filme cria uma situação em que todas as outras imagens que não são de depoimentos tornam as de depoimentos mais fortes, pela alternância de registros como modo de evitar o acúmulo de cabeças falantes, mesmo que essas cabeças tenham muito o que dizer.
Garotas / Museu (Girls / Museum, 2020), de Shelly Silver
Uma ideia bem simples resulta num filme agradável de se ver. Garotas são levadas a um museu em Leipzig para comentar as pinturas e esculturas que veem. A cineasta recorta as telas visando responder aos comentários mais detalhados das garotas e acaba nos convidando para um debate sobre a criação artística de outros tempos à luz de nossa leitura hoje. A maneira como vemos essas obras geralmente são filtradas pelo contexto em que vivemos, a não ser que olhemos como historiadores.
Mas não é essa a intenção da diretora. Tampouco pensar as obras esteticamente, a não ser quando o dado estético surgir naturalmente em algum comentário, mesmo sem ser procurado. A escolha por garotas jovens, por vezes até crianças, nos revela olhares interessantes, atentos, que buscam sentidos para as histórias pintadas e um entendimento do passado tal como retratado artisticamente. Por vezes o ângulo escolhido para a câmera nos fornece já na imagem uma leitura interessante, como acontece quando ela filma o busto de uma escrava em primeiro plano e de uma leitora aristocrata num segundo plano, com um quadro de natureza morta ao fundo.
É justamente uma criança que faz o melhor depoimento, sobre a incapacidade de se desfazer o que foi feito (a quase invisibilidade das mulheres na história da arte) e as maneiras de se evitar que injustiças como essa se perpetuem. É com ela que Shelly Silver inteligentemente encerra seu filme.
Rumo ao Norte (North by Current, 2021), de Angelo Madsen Minax
Um cineasta viaja ao norte dos EUA para reencontrar sua família após uma morte muito sentida. Esse é o mote, mas muitas outras coisas regem o filme. Imagens tomadas recentemente se alternam com imagens do passado, por vezes um passado bem recente, numa espécie de investigação sobre o que restou do relacionamento do cineasta com seus familiares.
Confesso que esse tipo de filme não costuma me encantar. Desde Tarnation, longa muito celebrado no início deste século, percebo alguns críticos e cinéfilos mais entusiasmados com esses acertos de contas familiares. Claro, para esses, cada filme é bem diferente do outro, e eu entendo esse sentimento. Tarnation, em particular, soa distante, em alguns aspectos, de Rumo ao Norte. Mas ambos, e outros do tipo, têm em comum algo que me incomoda um pouco: essa mania de se expor o tempo todo, de expor sentimentos como um valor da contemporaneidade e de pedir ou esperar que outros exponham também seus sentimentos. Uma prática bem de redes sociais, que o cinema utiliza há muito tempo (na verdade, desde os Lumière), mas que agora encontramos com maior frequência, ao que me parece, principalmente por causa da facilidade das câmeras digitais. E com frequência de maneira pobre, como se bastasse a auto exposição.
Estilhaços me encantou pela maneira poética como a diretora conseguiu mostrar uma tragédia (também uma tragédia familiar). O tão controverso Elena, de Petra Costa, também conseguiu contornar algumas armadilhas e entregar alguma poesia. Novamente: são dois filmes bem diferentes deste Rumo ao Norte, apesar de algumas coisas em comum. Neste último, vejo um pouco de poesia também, ainda que com menor grau de sucesso. Ela aparece mais quando o cineasta a extrai das crianças, e também com a questão da aceitação de sua sexualidade. Há mais provocação, mais confronto, o que às vezes contribui para aquele enfado de que falei, semelhante ao das redes sociais, mas também nos leva a alguns questionamentos sobre nossos próprios relacionamentos familiares – ainda mais agora, no Brasil – e o quanto lidamos com perdas e separações prematuras. Poderíamos ter feito algo diferente nesse processo? Claro que cada um responderá à pergunta – e ao filme – de uma maneira, de acordo com suas próprias dúvidas e valores. Mas todos queremos encontrar esse norte.
Nós (2021), de Letícia Simões
Vi o filme brasileiro Casa no Olhar de Cinema de 2019. Na ocasião, pareceu-me um bom filme, ainda que supervalorizado por boa parte da crítica (generalizando, claro). Hoje, lembro bem do filme, mas não me lembro em absoluto o que me fez gostar dele, o que me fez considerá-lo um dos exemplos de melhoria do cinema brasileiro na segunda metade da década passada. Ao contrário de Diz a Ela que Me Viu Chorar (Maíra Buhler, 2019), do qual lembro bem nas belezas e nas imperfeições e na memória mantenho como um desses exemplos, as qualidades de Casa meio que sumiram de minha mente. Miragem de festival? Talvez. Temo que isso seja mais comum do que imaginamos (e desejamos) e que muitos filmes vistos hoje com alguma satisfação amanhã nos parecerão pouca coisa, assim como o inverso também é frequente.
Isto me veio à cabeça quando percebi que Nós, o novo filme de Letícia Simões, diretora de Casa, encerraria a edição de 2021 do Olhar. E o filme, que é bem diferente de Casa, por sinal, já começa com a diretora dizendo que morou em vários lugares diferentes (cidades iniciadas com quase todas as letras do alfabeto). Depois, diz que aprendeu uma língua indígena. A diretora se apresenta como uma cidadã do mundo e tal. Tenho a impressão que por trás de uma estrutura razoavelmente pensada para agradar plateias de festival, não há muito mais coisas, e não sei se vai sobrar muito desse filme daqui a um ano, talvez mesmo daqui a alguns meses.
Não tenho problema com o que os jornalistas culturais costumam chamar de “umbiguismo”. Gosto, por exemplo, do Elena de Petra Costa, mesmo sabendo representar uma minoria entre meus colegas críticos. Gosto de muitos filmes que esses colegas diriam sofrer de “umbiguismo”.
No caso de Nós, o que posso dizer é que esse “umbiguismo” na primeira pessoa do plural não me interessa muito, já que acompanhei todos os seus 80 minutos com uma distância incômoda, uma sensação de perda de tempo. Tudo me pareceu ajeitado demais, exageradamente preocupado em se apresentar como um filme nobre, cheio de boas intenções apresentadas com algum esnobismo, estruturado por um desejo de agradar críticos, mais do que por alguma inquietação particular. Como é, de fato, ajeitado, há uma série de planos bem filmados, que no conjunto se perdem.
A Matéria Noturna (2021), de Bernard Lessa
Neste país imenso, temos as cenas estaduais, que fazem com que o cinema pernambucano seja bem diferente do cinema baiano, que por sua vez é bem diferente do gaúcho que é bem diferente do paranaense e por aí vai. Daí que um filme capixaba chama a atenção quando aparece, ainda mais um longa-metragem.
Em A Matéria Noturna, temos dois personagens que se encontram. Primeiro vemos Jaiane, uma motorista de uber que recebe de uma senhora o aviso de que há com ela uma energia pesada e estranha, e que ela devia seguir sua intuição. Depois aparece Aíssa, estrangeiro que desembarca no porto de Vitória sem destino certo aparente. Ele anda pela noite entre rodas de samba e cervejas, procurando alguma coisa que não nos é clara. Sabemos que sua estada é temporária, mas um marinheiro sempre pode deixar de se apresentar ao navio e fincar raízes, temporárias ou não, em algum porto que não seja solidão. Vitória não o será, pois Aíssa encontrará Jaiane, e com esse encontro, o filme, que era interessante enquanto focava Jaiane e passou a ser um pouco enfadonho quando passou a focar em Aíssa, penderá para o enfado de Aíssa, infelizmente.
Quando o chamado acontece, o homem do mar nem se despede. Tem de se apresentar urgentemente ou fica em terra. No final, não conseguimos entrar no uber de Jaiane e o mar de Aíssa não nos interessa.
Tzarevna Descamada (Doch Rybaka, 2021), de Uldus Bakhtiozina
A transformação de uma jovem mulher em uma boneca. Numa escala imaginária de qualidade, este filme russo estaria abaixo de Valerie e sua Semana de Deslumbramentos e acima de Amélie Poulain. Infelizmente, bem mais próximo do segundo. Há ecos também de As Margaridas, de Vera Chytilova, por sinal, um belo filme que tende a inspirar alguns monstrinhos, e do cinema de Alejandro Jorodowski (principalmente Fando e Liz e os últimos filmes). Há ainda um momento constrangedor, que remete, bizarramente, a um clipe da banda de pop engraçadinho Bloodhound Gang. Como diria o Inácio Araujo, não dá pé.
O Protetor do Irmão (Okul Tirasi, 2021), de Ferit Karahan
A câmera-cachorro consiste em reproduzir nas imagens a visão subjetiva de um cachorro. O menino joga uma toalha, a câmera faz um breve movimento para cima e depois para baixo para acompanhar a queda da toalha, mesmo que no ângulo escolhido uma câmera estática permitisse a visão da toalha atingindo seu ponto máximo de altura e caindo no chão. Foi uma maldição muito usada por Brillante Mendoza (reclamei bastante disso na época), entre muitos outros diretores. Ela está de volta com O Protetor do Irmão. Pois não basta mostrar o mundo cão da burocracia e do autoritarismo dirigido a crianças. É preciso mostrá-lo com uma boa porção de câmera-cachorro. Assim, a cada gesto que alguém faça, cada movimento em cena, a câmera precisa acompanhar como se fosse um cachorro. Desse modo, os espectadores não tem uma visão privilegiada de cada acontecimento, eles têm uma visão propositalmente prejudicada. Há quem goste disso, mas desconheço um único filme que seja bem-sucedido por causa dessa opção e não apesar dela.
Em outro texto, escrevi que a câmera na mão, quando bem operada, poderia fazer todo o sentido e contribuir para que um filme fosse melhor. Aqui temos um exemplo de câmera mal operada, mesmo quando não há o efeito cachorro – ela balança como se tudo se passasse num vendaval, mesmo quando dentro do internato. São poucos os planos que se salvam neste filme, e são justamente aqueles em que a câmera não chacoalha. Esse tipo de câmera propositalmente mal operada entrou na moda há uns quinze anos. Estaria ultrapassada, se vez ou outra não aparecesse alguma aberração para ressuscitá-la.
Apenas o Sol (Apenas el Sol, 2020), de Arami Ullón
Aqui, a câmera também está na mão, mas é razoavelmente bem operada, o que faz toda a diferença. Não se sente, como em O Protetor do Irmão, que ela balança por cacoete estiloso, mas pela respiração de quem a opera. A diferença então é brutal. Ficamos mais próximos do efeito da câmera como uma testemunha dos eventos. A maior parte do que testemunhamos são conversas. Elas dão conta de injustiças e opressões, e são por si mesmas interessantes. Mas tenho dúvidas de que sustentem sozinhas um filme. É necessário algo mais para dar maior valor cinematográfico aos relatos. Perto dos 30 minutos de filme, vemos uma série de imagens de animais mortos. Estirados ou despedaçados sob um sol massacrante, esses animais surgem como um elemento de crueldade poética na linha de Buñuel e seu Las Hurdes, ou de Glauber Rocha (que amava Buñuel) e Deus e o Diabo na Terra do Sol. É um momento forte, tanto por quebrar a série de depoimentos como por nos trazer de volta ao filme que já ameaçava ficar cansativo, a despeito de seu tema nobre. Existem outros respiros no filme, mas nenhum deles chega perto dessa força.