Martin Scorsese no século 21

Uma música techno embala uma belíssima sequência de batalha no século 19. Os cortes provocam uma alternância entre um efeito de dispersão e o choque de uma violência brutal. O corpo que cai morto no chão em câmera lenta é de um padre irlandês (Liam Neeson). Tudo para até que se recolham os feridos e se proteja o cadáver de tão nobre figura (“o único homem honrado que matei”, dirá Bill the Butcher, personagem de Daniel Day Lewis, mais adiante). O filho desse homem honrado se rebela e foge. Irá crescer, provavelmente, com o sentimento de vingança. Assim começa Gangues de Nova York, cartão de visitas de Martin Scorsese para o século 21.

Muito se diz que esse maverick da Nova Hollywood decaiu depois de Cassino. Que seus filmes mais recentes, principalmente neste século, estariam contaminados por uma ambição cuja dimensão encobre o seu apetite cinematográfico. Que suas produções se tornaram mais infladas e menos inventivas, porque orientadas muito mais para notas de prestígio do que para a investigação sobre algumas inquietações necessárias a todo artista. Tudo isso é verdade, ou um pouco verdade. Mas o talento continua lá, seja na forma como as narrativas se desenvolvem (Os Infiltrados e Ilha do Medo são bons exemplos disso), seja na visão de historiador que orienta a maneira como as tramas se desenrolam (Gangues de Nova York, Silêncio), ou na crítica ao capitalismo yuppie (O Lobo de Wall Street), mesmo que deva se equilibrar em meio às firulas e caminhos mal traçados (Lobo tem dos dois em altas doses, O Aviador também). São problemas claros, mas que filmes não os tem? Tenho a impressão de que Scorsese sofre do mesmo problema de Clint Eastwood, ou seja, seus filmes costumam ser vistos com olhos de fiscais, para roubar uma expressão que Inácio Araujo usou para defender Menina de Ouro anos atrás. O que se perdoa em outros cineastas não se costumaperdoar nos filmes de Scorsese e Eastwood.

Os Infiltrados tem uma sequência, a da perseguição do agente duplo interpretado por Matt Damon pelo agente duplo interpretado por Leonardo DiCaprio, que remete, no tom, ao melhor cinema de Hong Kong, e uma secura na violência que O Irlandês persegue sem muito sucesso. Hoje percebo muito melhor as qualidades do filme, enquanto os problemas já me parecem irrisórios, reservados apenas aos que veem os filmes com olhos de fiscais. Não é o caso de levantar mais uma vez a desgastada bandeira do autorismo para defender um cineasta que nem precisa ser defendido. Mas também não acho justo usar o autorismo de forma reversa, inflando erros e ignorando acertos de filmes em que os últimos superam de longe os primeiros. E ao contrário do que alguns amigos críticos dizem, acho a montagem de Thelma Schoonmaker nesse filme primorosa, quase tão boa quanto as de A Última Tentação de Cristo, A Época da Inocência e Kundun, os três longas em que ela precisou conciliar a ansiedade anfetamínica do diretor com a calma necessária aos temas.

Se O Irlandês me pareceu contaminado pelo cinema de comitê da Netflix (gigante do streaming que dominou nossos cadernos culturais de tal forma que acabou por aniquilar quase toda a crítica brasileira com isso), Silêncio é a realização de um sonho clássico que Scorsese nunca havia abraçado de fato até então, um longa que permite a um ator, Andrew Garfield, mostrar-se em seu melhor, num nível que jamais suspeitava que ele tivesse.

O Scorsese do século 21 pode não ter nada à altura de Taxi Driver, Touro Indomável ou Cassino, a meu ver, seus três maiores filmes. Mas está bem longe de ser essa terra arrasada que muitos críticos enxergam. Algo do rapaz rebelde de Little Italy sobrevive em meio aos enfeites do grande orçamento.

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