Aproveitando que entraram alguns filmes de Gerson Tavares no Making Off, republico aqui o texto que fiz para a Revista Interlúdio em 2015, quando o cineasta foi homenageado no CineOP.
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Antes, o Verão
Em um momento chave deste filme raro de Gerson Tavares, Jardel Filho tem um diálogo elucidativo (que obviamente não saberei reproduzir com exatidão) com sua vizinha, Gilda Grillo, com quem logo depois terá um affair: “gosto de psicodelia, LSD…”, diz ela, enumerando coisas bem típicas do verão do amor (67 na Inglaterra, com ecos em 67/68 no Brasil). Ao que ele responde: “Eu ainda estou na Bossa Nova”. De certa forma, essas falas refletem um pouco o que é Antes, o Verão naquele momento, 1968, no contexto do cinema brasileiro e mundial: um filme que parece de dez anos antes, o que de jeito nenhum, nesse caso, deve ser entendido como um demérito. Porque apesar de alguns truques herdados da Nouvelle Vague francesa, que Tavares espalha por sua narrativa, sobretudo nos momentos em que registra um acontecimento por meio de stills (a queda de Jardel Filho é um ótimo exemplo disso), o tom é devedor do Zurlini de final dos anos 50, algo como A Garota com a Valise ou Verão Violento. A música é melodramática. Há um clima de leve desespero no ar, e a pontuação é característica dos melodramas italianos. A crise no relacionamento de Jardel com Norma Bengell lembra também coisas do Rafaello Matarazzo, ou o Antonioni de O Grito. Por outro lado, o momento já mencionado em que Jardel Filho leva um tombo da escada, e esse tombo é registrado em stills, indica outra filiação, mais de acordo com a segunda metade dos anos 60. É quando ele conhece a bela vizinha com quem terá um caso. Ele acorda com a cabeça repousada nas pernas dela, que parecem fazer um convite, e ele estará pronto a aceitar assim que virar o corpo para encará-la, depois de levantado. É uma cena curiosa, porque Tavares demora a mostrar o rosto da moça que lhe dá assistência (Gilda Grillo), assim como o próprio Jardel demora para ficar curioso em verificar quem estava dando colo a ele. A estranheza domina toda a sequência. Uma estranheza que é comum no final dos anos 60, quando certas amarras didáticas já estavam sendo abolidas no cinema dito comercial. Ou seja, entenderia perfeitamente se o filme fosse de 1959 ou 1960, mas ao mesmo tempo existem sinais claros de referências posteriores.
Sei que a maior parte do que era feito no mundo não respondia aos preceitos do cinema moderno, e no cinema brasileiro não seria diferente (por sinal, é o que Bordwell aponta ter acontecido nos EUA na época da Nova Hollywood). Uma enormidade de filmes, digamos, clássicos foram feitos nessa época, mas nem por isso eles não seriam, todos, mesmo estando em maioria, deslocados no tempo. Por um simples motivo: esses filmes são lembrados, estudados, vistos e revistos hoje? Muito raramente. Alguns deles merecem maior reconhecimento. Mas o fato é que tendemos a subvalorizar filmes que aparentam caretice em meio às doideiras feitas nos anos 60. E é nesse sentido, o de espírito de um tempo, onde uma minoria de filmes falava mais alto, que devemos situar Antes, O Verão, um objeto estranho em relação ao que retemos daquela época. Alguns filmes do biênio 1967/1968 a título de comparação: Terra em Transe, Câncer, Brasil Ano 2000, O Bandido da Luz Vermelha, A Margem, Hitler do 3º Mundo, Viagem ao Fim do Mundo, O Homem e sua Jaula, A Vida Provisória, Garota de Ipanema, As Amorosas, entre muitos outros filmes que se alinhavam de alguma forma à chave da época e que hoje são bem mais lembrados e reverenciados. É compreensível, então, que Antes, o Verão tenha sumido de circulação depois de um tempo. O que não deixa de ser injusto.
Antes, o Verão foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo de 2014. No meio de tantos filmes, lembro de ter anotado como uma das prioridades. Mas quem disse que é possível ver todas as prioridades num evento tão grande como a Mostra SP? Bom que o CineOP o resgatou e o exibiu com maior alarde. O filme e seu diretor merecem.
Curtas de Gerson Tavares
Lembram os curtas de início da carreira de Ermanno Olmi, institucionais para a Edison Volta. A sessão começa e termina com curtas burocráticos, mas é recheada com cinco curtas muito bons entre o começo dos anos 60 e meados dos anos 70: O Grande Rio, de 1959, explora o São Francisco. Brasília, Capital do Século é o belíssimo registro da construção de Brasília, em 1959, Feito na mesma época e com a mesma equipe temos o documentário sobre arquitetura moderna brasileira, Arte no Brasil Hoje, também de 1959. A cor explode bonita nos dois primeiros curtas dos anos 70, Gafieira, de 1972, com fotografia primorosa de Lauro Escorel, e Ensino Artístico, de 1973, que remete igualmente a filmes feitos antes e depois dele: O Mistério de Picasso, de Clouzot, e Ser e Ter, de Nicolas Philibert.