Breve balanço da 45ª Mostra SP

Diários de Otsoga

Já tem uns dez anos que meu envolvimento com a Mostra SP não é o mesmo. Algo se perdeu nessa relação. O cinema, decerto, não é mais o mesmo. O mercado fala mais alto, e com isso os filmes se tornaram cada vez mais planejados dentro de esquemas de venda, seja para festivais pelo mundo, seja para um tipo de circuito e até para as plataformas de streaming, cada qual com seus vícios. Para aumentar ainda mais o meu desinteresse, programaram um monte de sessões exclusivamente presenciais com a pandemia de Covid-19 ainda em curso, e num momento perigoso, quando todos parecem estar relaxando nas medidas de segurança, até mesmo, pelo que me disseram, algumas salas de cinema (o Belas Artes – novamente, pelo que me informaram – teria sido a campeã do desrespeito aos protocolos da pandemia, enquanto o Cinesesc foi o que mais levou a sério). Li que a intenção da mostra era fazer uma programação inteiramente em formato híbrido, com sessões presenciais para alguns filmes e online para todos os filmes selecionados. A ideia era ótima e seria uma baita bola dentro da organização, para além da dificuldade de se levantar um evento desse porte em tempos como estes e num país como este. Alguns produtores irresponsáveis, contudo, não quiseram ceder seus filmes para exibições online, e por isso esses filmes foram exibidos unicamente em salas de cinema. E quando se chama o público para as salas, com cinéfilos o dia inteiro vendo filmes, como esperar que todos usem máscaras o tempo todo? Houve fiscalização dentro das salas com as sessões em andamento? Creio que não.   

Claro, a covid-19 é só um fator. Há aquele esboçado no início, do nível dos filmes. Como explicar, por exemplo, que um filme terrível como o novo de Nadav Lapid, Ahed’s Knee, seja visto como um dos melhores de toda a programação? Seria o caso de delírio coletivo? Ou as viradinhas na câmera, à Xavier Dolan, teriam entrado na moda? Outro delírio parece ter sido com Mia Hansen-Love, cujo cinema coxinha (quase tanto quanto o de Olivier Assayas) parece agradar justamente aqueles que viviam rotulando todo mundo de coxinhas (até que alguns desses coxinhas viraram fascistas no decorrer da década passada). Bergman Island tem ingredientes na medida certa para agradar a cinefilia burguesa que interrompe tudo para acompanhar a mostra. Mas não passa disso, um filme burguês e razoável para quem quer parecer inteligente, uma versão melhorada do abominável A Grande Festa do Cinema (2012), com o qual Raya Martin esgarçou os limites do arrivismo cinematográfico. Titane é delírio de Cannes que virou delírio na Mostra, mas isso já era esperado. Escrevi sobre o filme de Julia Ducournau para o Leitura Fílmica. Tem ainda o inventário de fofuras cinematográficas da Geórgia, o irregular What do We See When We Look at the Sky, de Alexandre Koberidze, que sofre também de um exagero em sua duração (150 minutos). Poderia ter uns 30 ou 40 minutos a menos se eliminasse boa parte de suas firulas paparicadoras de plateias cansadas de tanto filme duro de festival. Sobre Annette, já disse tudo que queria no Leitura Fílmica.

Do outro lado, algumas surpresas. Ana Katz surge com seu melhor filme até aqui: O Cão que Não se Cala, uma espécie de premonição da Covid disfarçada de elogio ao homem comum. Miguel Gomes se une a Maureen Fazendeiro para fazer o belo Diários de Otsoga (texto no Leitura Fílmica), diário com a “cronologia invertida” que, graças a essa estratégia, se torna um filme original sobre a pandemia. Inácio Araujo o chamou de experimento radical. Mas não vejo esse radicalismo no filme. Vejo algo mais lúdico, simples, agradável de se ver como nenhum filme de Miguel Gomes havia sido (nem Tabu e Aquele Querido Mês de Agosto). Também de Portugal, a surpresa incompreendida No Taxi de Jack, de Susana Nobre, é muito mais valioso do que muitos filmes inflados que pude ver (alguns eu vi porque foram inflados) na programação. O filme fala de coisas profundas de um modo simples, mas muita gente entendeu como dependente de um personagem, o que discordo totalmente. Aliás, acho um ótimo personagem o do taxista, mas o filme fala de outras coisas, procura outros entendimentos sobre o ser português e as condições do exilado, que não necessariamente passam pelo personagem.

Outros filmes interessantes, mas nem tanto, ou não tão surpreendentes são: Azor, de Andreas Fontana, uma espécie de Costa-Gavras com momentos de Marco Bellocchio, embora o primeiro prevaleça; Wheel of Fortune and Fantasy, de Ryusuke Hamaguchi, superior ao anterior dele, Asako I e II, mas ainda insuficiente para justificar tamanho endeusamento desse cineasta; o tocante longa romeno Întregalde, de Radu Muntean, que traz um senhor senil para compensar a estupidez do outro personagem masculino; o irregular, mas com momentos bem curiosos, Eu Era Um Homem Comum, de Christopher Makoto Yogi; e o português Listen, de Ana Rocha de Sousa, uma espécie de Ken Loach revigorado.

Não pude ver alguns filmes de grande importância como Memória, de Apichatpong Wheerasethakul, Marx Pode Esperar, de Marco Bellocchio, entre outros. Gosto sempre de ver alguns brasileiros da programação, mas neste ano não consegui ver nenhum. Também não pude rever os filmes do grande Paulo Rocha, mas pelo que me disseram, não foram bem programados, recebendo aquele tipo de desleixo que costuma acontecer com os filmes de retrospectiva nas últimas edições. Com tanta oferta de filmes em tantos festivais online e canais de streaming, contudo, a ansiedade da cinefilia já não faz mais sentido.

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*** Para alguns comentários rápidos sobre os filmes vistos na Mostra visitem o meu perfil no letterboxd.