Em Prisão, filme que cresce como poucos a cada revisão, Ingmar Bergman propõe uma das mais fascinantes aventuras pelo mundo da criação artística.
Um professor de matemática recém saído de uma instituição para doentes mentais procura um diretor de cinema, e também ex-aluno, para propor um filme sobre o diabo. João Bénard da Costa, na Folha da Cinemateca, argumenta que, como o diabo não tem programa, segundo diz o próprio professor, tudo que veremos a seguir pode ser o tal filme sobre o diabo.
Num dos momentos brilhantes da mise en scène bergmaniana, estamos num set de filmagem e prepara-se uma cena que mostra um casal conversando dentro de um barco e no meio de um lago. Só que eles estão num estúdio, a água é retro-projetada e o reflexo no rosto deles é dado por um pequeno rebatedor. Quando o diretor diz ação, a câmera do filme se movimenta para a frente até se confundir com a câmera do filme dentro do filme, e o que temos é o processo inverso do que faria Jerry Lewis anos depois em O Terror das Mulheres e O Otário: Bergman começa nos entregando a mentira, o artificialismo do estúdio, para terminar com o fruto dessa mentira, tornado verdade pela representação cinematográfica. O filme dentro do filme se transforma no filme, e o que vemos é o mesmo que verá esse hipotético espectador do filme que estão fazendo.
É brilhante, mas também é um sinal de que Bergman tem plena consciência de que a grande força de Prisão é esse embaralhamento de instâncias. Embaralhamento reforçado, no mesmo sentido, na cena em que Birgitta observa a conversa de um outro casal da escada da pensão onde mora. Graças a um falseamento do cenário, Bergman nos mostra que ela acompanha a conversa de um lugar privilegiado, quase um camarote de um teatro, enquanto o casal não percebe que ela continua ali. Ou não pode ver, já que nesse momento Birgitta deixa de ser personagem para ser também uma espectadora, e volta a ser personagem quando o plano acaba, ela vira o rosto na nossa direção e o foco de luz surge para percebermos sua expressão desolada.
Brincar com essas camadas do fazer cinematográfico será uma constante no universo de Bergman. Em Sorrisos de uma Noite de Amor, a atriz no palco, Eva Dahlbeck, em um breve plano, é mostrada como se estivesse em uma tela de cinema. Em Persona, o prólogo joga luz nessas camadas a ponto de confindi-las, formulando um enigma de rara força. São apenas mais alguns exemplos dessa preferência trabalhada com maestria, pela primeira vez, em Prisão.
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Nota digressiva: Em 8/8/88, eu estreava um novo aparelho de som comprado por meus pais com a gravação de uma fita cassete de um disco do Alan Parsons Project (Eye in the Sky). Tinha 19 anos, estava com catapora e já gostava de música de velho. Em 8/8/18, atualizo o blog pela primeira vez desde a volta de Portugal, com a promessa de mantê-lo atualizado com mais frequência.