Uma história da democracia brasileira

Texto escrito para a revista Aventuras na História, para publicação na edição de outubro, mas recusado. Entendo bem os motivos para a recusa, embora não concorde. No mais, a pesquisa foi bem ampla, então acho justo publicar o resultado aqui, com o consentimento da editora (que não teve culpa alguma na recusa).

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A intervenção militar na política e na sociedade é sinal de fraqueza tanto do Estado como da sociedade.

Frank D. McCann, historiador norte-americano

Por Sérgio Alpendre

O paulista Prudente de Morais foi o primeiro presidente civil da República, após dois militares, e o primeiro escolhido por eleição direta. Governou o país de 15 de novembro de 1894 a 15 de novembro de 1898, sendo também o primeiro presidente com mandato de quatro anos.

Sua ida ao Rio de Janeiro para tomar posse, contudo, parecia um filme surrealista da Checoslováquia dos anos 1960, conforme contada por Laurentino Gomes. Ao descer do trem, o presidente encontrou um saguão cheio de flores colocadas em homenagem a generais uruguaios que haviam chegado dias antes, ou seja, elas já estavam enrugadas e sem cores. Ninguém o recebeu, ninguém o cumprimentou. Foi se hospedar no Hotel dos Estrangeiros, sem uma alma para recepcioná-lo. Parecia um comum, um paulista qualquer em temporada de férias na capital. Quis marcar uma audiência com seu antecessor, o alagoano Floriano Peixoto, para tratar da transição do cargo, mas foi solenemente desprezado.

Em 15 de novembro, dia da posse, ninguém foi buscá-lo no hotel. A solução foi alugar um carro. Mas só estava disponível um calhambeque velho com um cocheiro malvestido. O cargo lhe fora transmitido por um secretário. Floriano Peixoto nem se dignou a aparecer. Na hora de voltar ao hotel, ficou novamente desamparado, sendo obrigado e pegar carona com o embaixador da Inglaterra.

No primeiro dia de trabalho, encontrou um palácio vazio, sem móveis e com estofados rasgados a golpes de baionetas. Na arte da destruição, os militares sempre foram mestres. Não havia melhor espelhamento da situação do país à altura: uma terra arrasada. O primeiro governo de um civil na República, presumia-se, teria uma missão quase impossível.

Eleito com mais de 276 mil votos, contra pouco mais de 38 mil de seu principal oponente Afonso Pena, Prudente de Morais mal conseguiu pacificar a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul e já teve de enfrentar a pequena revolta da Escola Militar e, principalmente, o movimento rebelde de Canudos, comandado por Antônio Conselheiro.

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Antes de continuar, um breve aviso. Este texto pode ser lido como uma aventura na história, ou pela história. Na impossibilidade de uma análise objetiva da história democrática no Brasil no espaço de um artigo, resta-nos estudar alguns historiadores que a investigaram para chegarmos, talvez, a uma nova reflexão. Desta maneira, é menos um texto elucidativo do que um texto que convida a explorar o caminho do pensamento. Por sua própria natureza, está exposto a muitos riscos, assim como nossa democracia.

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Crise? Que crise?

Quem diz hoje que a democracia está em crise parece ignorar que essa sempre foi a condição brasileira: uma eterna crise do que quer que seja, até mesmo de brasilidade. Crise das direitas, crise das esquerdas, crise dentro dos quarteis e dentro do congresso, crise na colônia, na monarquia e na república. O estado de crise é nossa condição desde a chegada de Cabral.

Há quem diga, com certa razão, dependendo do ângulo de onde se olha, que a democracia nunca existiu no Brasil. Em outubro de 2019, no décimo mês de um governo que flerta com o autoritarismo dia sim, dia também, Vladimir Safatle dizia, num debate do ciclo “Democracia em Colapso”, que “a democracia é algo que nunca esteve no horizonte concreto da maioria das pessoas desse país”. O filósofo teria dito, conforme lembra Isabella Fiuza, do site Jornalistas Livres, que “o principal elemento constituinte da sociedade brasileira se fundamenta em um modelo latifundiário escravista que perdura até os dias de hoje”.

Não é uma posição isolada. Poucos anos antes, em entrevista para a Rede Brasil Atual, o renomado jurista Fábio Konder Comparato (1936), ao comentar sobre decisão do STF que abria as portas para o impeachment de Dilma Rousseff, ponderou que a democracia nunca existiu neste país porque democracia “é poder supremo do povo”.

O sociólogo Aldo Fornazieri dizia, em 2018, que não existia democracia no Brasil, ao menos naquele momento, subentende-se. E depois argumenta, com razão, que não é possível existir democracia onde há desigualdade social. Ou seja, para ele também, no fundo, nunca existiu democracia por aqui.

Em Da Monarquia à República: Momentos Decisivos (1998), Emília Viotti da Costa (1928-2017) dedica um capítulo ao que ela chama de “mito da democracia racial no Brasil”, a partir do revisionismo crítico feito por historiadores como Octavio Ianni e Florestan Fernandes à ideia de democracia racial defendida anteriormente por Gilberto Freyre. Vozes negras e indígenas sempre foram caladas. A autora ainda contribui, nesse livro, para alguns esclarecimentos sobre como foi mudando o entendimento da Proclamação da República e de seus desdobramentos ao longo dos anos.

Em entrevistas e declarações para a imprensa, o jurista e pensador Raymundo Faoro (1925-2003) sempre demonstrou um entendimento profundo do jogo político, antevendo até mesmo alguns movimentos, como a dissidência do PMDB que faria nascer o PSDB em 1988 ou a eleição de Lula mesmo com as divisões da esquerda. Para Faoro, em entrevista de 2000 publicada na Carta Capital, a história da democracia no Brasil ainda não havia começado. Como intelectual de esquerda, autor de um livro essencial chamado Os Donos do Poder (1958), em que investiga a história do patronato brasileiro desde a origem de Portugal, talvez ele mudasse de opinião se tivesse visto alguns anos do governo Lula (tendo morrido em maio, viu apenas alguns meses). Por outro lado, talvez considerasse um governo comprometido demais com as alianças para pensar realmente no povo.

Já Jorge Ferreira, no livro O Tempo da Experiência Democrática, ao comentar o período entre 1945 e 1964, disse que os historiadores que negam a experiência democrática do período “procuram, muitas vezes, uma receita prévia de democracia, esquecendo-se de que ela não nasce pronta, mas é conquistada, ampliada e inventada”. Defendendo que a marca do regime democrático é a incompletude, o historiador comemora as resistências do período contra tentativas de golpes autoritários e se espanta com a curiosa complexidade da população brasileira, que entre o fim de agosto e o começo de setembro de 1961 resistiu à tentativa de golpe de estado por parte dos ministros militares e do governador da Guanabara Carlos Lacerda e menos de três anos depois assistiu passivamente à tomada do poder por militares e ao início de uma ditadura que durou 21 anos.

Palavra-chave

A palavra retorna. Complexidade: engloba reações militares pró-democracia contra militares golpistas do mesmo período e reação contundente de políticos de direita contra o veto à posse de João Goulart em 1961, por exemplo. Ou que existam organizações de policiais antifascistas. Ou ainda que, numa esfera mais corriqueira, o mesmo eleitor que apertou 17 nas urnas em 2018 pode ser um cordial vizinho de fala mansa e ótimas intenções com a comunidade.

Como pensar, então, numa possível história da democracia no Brasil, se for verdade que nunca tivemos esse tipo de governo? E se nunca a tivemos de fato, o que seriam os anos em que não estávamos em uma ditadura, seja a de Getúlio Vargas (1937-1945), seja a dos militares (1964-1984)? Dizer que já estivemos sob uma democracia pode ser tão simplório quanto dizer que nunca houve democracia no Brasil. Porque tudo depende do aspecto que se quer dimensionar, com o perdão dos que rejeitam, por vezes com razão, relativismos dessa espécie.

Parece ser uma condição de alguns países, notadamente os menos desenvolvidos, que a democracia esteja sempre nesse estado, numa eterna crise que impede até que seja entendida como tal. Essa crise pode ser menor em alguns períodos da história, como no período entre 1945 e 1964 ou entre 1995 e 2015. Mas nunca pudemos dizer que vivíamos numa democracia plena, em que a grande parcela da população em condição mais frágil tinha alguma voz. Sempre estivemos sob a ameaça de oligarquias e suas alianças espúrias. Para manter o status quo, os setores conservadores da sociedade brasileira se aliam até mesmo a fascistas.

Talvez o maior problema de qualquer governo é que para ter governabilidade é necessário o apoio de setores conservadores da sociedade, em suma, dos donos do dinheiro e dessa entidade chamada mercado. Desse modo, por mais progressista que seja um governo, ele tende ao centro por causa das negociações necessárias para se manter no poder.

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Procurando um resumo do conceito

No Dicionário de Filosofia Política, o verbete assinado por Renato Janine Ribeiro diz: “democracia significa, literalmente, poder do povo. Isso não quer dizer governo pelo povo”. Diz também que “na democracia, decide o demos, povo, mas isso não quer dizer que toda e qualquer medida de governo seja sua”. Mais tarde, o filósofo explica que “em Atenas estava-se mais perto da ideia de que o povo tudo decidisse”, e que “a democracia é o poder do homem comum”. Finalmente, Janine Ribeiro entra no cerne do problema das democracias modernas:

por um lado, ela se expandiu, enquanto liberdade de expressão, de organização e de voto numa escala nunca antes vista. (…) Por outro, porém, ela está ainda demasiado confinada à esfera política. Somos iguais só nas eleições e, mal elas terminam, um surdo terceiro turno faz que decisões tomadas pelo demos sejam revertidas ou reduzidas pelos poderes da desigualdade, basicamente, mas não só, o capital. As relações de trabalho não foram democratizadas. As relações afetivas – amizade e amor – tampouco, mas parecem estar mais perto de sê-lo. 

Para Norberto Bobbio (1909-2004), que no Dicionário de Política (1983) fez um longo e elucidativo verbete sobre o conceito de democracia e sua mudança ao longo dos tempos, a democracia perfeita não havia sido realizada em nenhuma parte do mundo até então, sendo, portanto, uma utopia, e deveria ser “simultaneamente formal e substancial”. Em outro livro, Liberalismo e Democracia (1985), Bobbio passa pelo maior fantasma das democracias, o da ingovernabilidade. Entendendo que “uma das características da sociedade democrática é ter mais centros de poder”, esse poder se tornaria mais difuso e fragmentado conforme a sociedade permita mais participação, dissenso, “a proliferação dos lugares onde se tomam decisões coletivas”. Daí podemos entender que os conflitos oriundos desses diversos centros de poder enfraquecem a democracia, tornando-a um regime em que a ingovernabilidade acontece, ou em que a democracia é de fachada, meramente superficial, permitindo mais que um “surdo terceiro turno”, como dizia Janine Ribeiro, em que a verdadeira democracia fosse esfacelada.

Já contrapondo e aproximando os neoliberais aos democratas (“de irmãos inimigos a aliados”), Norberto Bobbio escreveu, ainda dentro da questão da ingovernabilidade:

Todas as democracias reais, não a ideal de Rousseau, nasceram limitadas, no sentimento já esclarecido de que às decisões que cabem à maioria foram subtraídas desde o início todas as matérias referentes aos direitos de liberdade, chamadas precisamente de “invioláveis”.

O filósofo francês André Comte-Sponville também criou seu Dicionário Filosófico. Nele, dedica um pequeno e elucidativo verbete à democracia, em que defende que não se deve confundir a democracia com a república, “que seria uma forma pura ou absoluta – una e indivisível, laica e mesmo igualitária, nacional e universalista”. E completa: “a democracia é um modo de funcionamento; a república, um ideal. Isso confirma que a democracia, mesmo impura, é a condição de qualquer república”.

O italiano Nicola Abbagnano lembra, a partir do importante Les Six Livres de la République (1576), do francês Jean Bodin, que “a soberania, que é o caráter fundamental do Estado, é una e indivisível: o Estado consiste na posse da soberania. O governo consiste, pelo contrário, no aparato através do qual tal poder se exerce”. E que “numa monarquia, a soberania reside no rei, mas ele pode delegar amplamente seu poder e governar por isso democraticamente, enquanto uma democracia pode governar despoticamente”.

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O fim do Império e o começo da infindável crise democrática brasileira

Não se trata de defender aqui a monarquia. Pelo contrário: é preferível uma democracia sempre em crise a uma monarquia ou uma aristocracia. Mas se para haver democracia é necessário haver república, a história brasileira mostra que o parto foi doloroso e deixou sequelas.

No Manual de Filosofia Política (2012), o professor de ética e filosofia Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros define desta forma a república, a partir dos diálogos Da República, de Cícero (106 A.C.-43 A.C.): “um agrupamento de homens em torno de interesses comuns”. O difícil, na equação, é atingir esses interesses comuns. Quanto maior a população, mais difícil se chegar a eles. Ainda mais porque um grupo de poderosos terá uma noção diferente dos interesses comuns do que teria um grupo com pouca ou nenhuma voz nas escolhas públicas.

A democracia no Brasil deveria começar com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, ou em 1894, quando o primeiro presidente civil, Prudente de Morais, é eleito diretamente, sucedendo os dois primeiros, militares, os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Como militares e democracia não andam juntos, a segunda data faz mais sentido de ser festejada, embora também tenha seus problemas, pois as mulheres eram impedidas de votar e tomava o poder a oligarquia dos cafeeiros ricos de São Paulo, que depois dividiriam o poder com os mineiros na chamada “república do café com leite” que durou até 1930.

Os anos 1930 foram de revoluções – as de 1930 e 1932 – e de um golpe, o de 1937, que iniciou a ditadura de Getúlio Vargas. A redemocratização começa em 1945. Alguns historiadores apontam essa data como a de início da democracia, por motivos que veremos mais adiante. Essas periodizações, contudo, são sempre discutíveis.

Laurentino Gomes diz que o 15 de novembro não é tão comemorado, no Brasil, como o 22 de abril e o 7 de setembro e até mesmo algumas datas regionais. A democracia não nasce imediatamente com a República, e quando finalmente nasce, já está em crise. Nos dez primeiros anos da República, incluindo, portanto, os primeiros governos civis, os inúmeros conflitos em todo o Brasil fizeram correr muito sangue, mostrando que por aqui as coisas caminhariam de modo mais tortuoso, com muitos obstáculos pela frente.

Quase dois anos depois da Proclamação da República, em 3 de novembro de 1891, o Marechal Deodoro da Fonseca, alagoano, fecha o congresso e declara Estado de Sítio numa tacada só. Anuncia assim a primeira ditadura militar desse bebê chamado República. Doente, ele renunciaria em 23 de novembro, vítima das reações aos seus atos intempestivos, dando o lugar a seu vice, o também alagoano Floriano Peixoto, conhecido como o Marechal de Ferro. Segundo Laurentino Gomes, “o sangue derramado nesse período [de seu governo, 1891-1894] iria definir para sempre os rumos da República brasileira”.

Combatendo as revoltas com violência, Floriano ganhou tantos aliados quanto inimigos, abrindo involuntariamente o caminho para seu sucessor, Prudente de Morais. A situação do país, contudo, permaneceu praticamente ingovernável, até que um atentado mudasse um pouco as coisas.

Em 5 de novembro de 1897, Prudente de Morais quase foi assassinado a facadas por um militar de baixa patente chamado Marcelino Bispo (a coincidência com o nome do autor da facada em Bolsonaro, Adélio Bispo, é notável). Quem salvou Prudente foi o Ministro da Guerra, o Marechal Carlos Machado Bittencourt, que ao proteger o presidente levou ele próprio as facadas, falecendo em seguida.

Essa tentativa de assassinato desmascarou um complô de militares e adversários republicanos. Como reação, Prudente de Morais conseguiu um novo Estado de Sítio, que lhe deu finalmente alguma tranquilidade para governar e passar a presidência para outro civil, Campos Salles. Este encontrou um país praticamente falido e iniciou uma “política dos governadores” que, segundo os historiadores, durou até 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas. Com essa política, os estados tiveram uma autonomia nunca antes vista, e oligarquias cresceram por todos os lados.

Após Campos Salles, que governou de 1898 a 1902, os presidentes se sucederam enquanto o Brasil parecia eternamente fadado ao subdesenvolvimento e às oligarquias: Rodrigues Alves (1902-1906), Afonso Pena (1906-1909), Nilo Peçanha (1909-1910), Hermes da Fonseca (1910-1914), Venceslau Brás (1914-1018), Delfim Moreira (1918-1919), Epitácio Pessoa (1919-1922), Artur Bernardes (1922-1926) e Washington Luís (1926-1930), até que Júlio Prestes, eleito diretamente para a presidência, não pode assumir por causa da Revolução de 1930, que colocou o país sob uma junta provisória que acabaria entregando a faixa para Getúlio. Este governou de certo modo democraticamente até 1937, quando, num golpe, instaurou o Estado Novo, tornando-se o ditador até 1945 e retornando depois, desta vez por eleição direta, no período entre 1951 e agosto de 1954, quando deixou o governo e o mundo, após receber pressões de todos os lados.

Afinal, quando começa a democracia no Brasil?

Para responder à pergunta, três possibilidades parecem mais consideráveis: a) ela ainda não começou; b) com o primeiro presidente eleito diretamente, ou seja, Prudente de Morais, mesmo que nem todos pudessem votar àquela altura; c) quando aconteceu a eleição presidencial de 1945, primeira em que as mulheres votaram. Esta última, se não for o verdadeiro início da democracia brasileira, é no mínimo o momento em que ela atingiu um pico jamais visto até então.

Alguns momentos de elaboração de novas constituições também podem ser entendidos como democráticos. Foram sete, no total, as constituições: 1824 (ainda no Império), 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. As de 1946 e 1988 são especialmente marcantes por terem acontecido após ditaduras, logo, em momentos de reconfiguração de uma possível democracia. A de 1934 procurava consolidar Getúlio Vargas no poder, prevendo novas eleições em 1938. A de 1937 anulou essa possibilidade e estabeleceu o Estado Novo, período autoritário do governo de Vargas. A constituição de 1967, ainda mais autoritária que a de 30 anos antes, visava institucionalizar o governo militar imposto com o golpe de 1964.

De todo modo, o período entre ditaduras, ou seja, de 1945, quando terminou o Estado Novo, até 1964, quando se iniciou a ditadura militar, foi de alternância entre dois projetos para o país na preferência dos eleitores, segundo o historiador Jorge Ferreira. O primeiro uniu comunistas e trabalhistas na ideia de um estado forte e desenvolvimentista, tendo como principais protagonistas os políticos do PSD (Partido Social Democrata) e do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). O segundo tinha ênfase no antigetulismo, no moralismo, no elitismo e no anticomunismo, na defesa de um liberalismo conservador; estava concentrado sobretudo na UDN (União Democrática Nacional).

As três grandes crises apontadas por Ferreira – o cerco a Getúlio Vargas culminando no agosto de 1954, o golpe preventivo do general Henrique Teixeira Lott em novembro de 1955 para garantir a posse de Juscelino Kubitschek e a Campanha da Legalidade de agosto de 1961 para garantir a posse de João Goulart – mostraram que qualquer aproximação que pudesse haver entre as forças políticas e o desejo de reformas sociais profundas terminava sufocada pelas forças conservadoras, até o sufocamento maior de abril de 1964. Após três reações bem-sucedidas a essas ameaças, houve esse ataque que não permitiu reação imediata.

Raymundo Faoro é bem preciso ao dizer que o projeto da direita brasileira vem de Dom João VI, e que nos últimos anos, quando confrontada, a direita foi vencedora nas duas estratégias tomadas, a da violência (o golpe de 1964) e a astúcia (as eleições indiretas após a campanha pelas Diretas Já), garantindo uma transição conciliadora, que afastasse o perigo de ruptura (à época, possível com Brizola ou Lula). Quando lembramos que Lula teve de fazer uma “Carta aos Brasileiros” para apaziguar o empresariado prometendo não alterar profundamente a economia do país, entendemos o que Faoro queria dizer.

O impasse de uma nação, ontem como hoje

Em 1967, o sociólogo Octávio Ianni escreveu que as duas opções para a sociedade brasileira eram o fascismo ou o socialismo. Ao temer o socialismo muitas vezes de forma irracional, a burguesia não hesitou em escolher o fascismo, apoiando o golpe militar e a ditadura que se intensificou em dezembro de 1968, com o AI-5. Por mais que os acontecimentos futuros e mesmo uma análise apurada sobre a inevitabilidade ou não do golpe de 1964 possam complexificar a formulação de Ianni, é inegável que esse impasse surgiu muitas vezes no Brasil, ainda que camuflados por outras palavras de ordem (contra a monarquia, política dos governadores, populismo, doutrinação marxista, venezuelização etc.).

De algum modo, parece que estamos vivendo o mesmo impasse em 2022. O fascismo agora é mascarado por uma rede de fake news e por uma entrega do país ao capital estrangeiro. O socialismo é visto em governos recentes que permitiram lucros milionários aos bancos ou em reivindicações por moradia, numa distorção grotesca que parece ter lugar exclusivamente no Brasil. Entre um projeto de governo que assimila o fascismo sem qualquer crítica e um projeto de centro que incorpora alguns anseios de centro esquerda e até da esquerda, mas também contempla a direita, boa parte da classe empresarial se faz de cega e opta pelo primeiro, mesmo que o custo seja o empobrecimento do país e sua falência educacional e cultural. A história da democracia brasileira mostra que todas essas distorções e o egoísmo das oligarquias nos acompanham desde sempre. O impasse só será resolvido quando as classes dominantes se imbuírem de um verdadeiro patriotismo, capaz de fazer com que os elos mais frágeis da sociedade se fortaleçam, alavancando todo o país rumo ao desenvolvimento sempre sonhado.

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