Neste ano atípico, em que os cinemas só estiveram abertos até o meio de março, não faz muito sentido pensar em uma lista com os melhores filmes lançados no circuito brasileiro, como fiz em todos os anos (exceto em 2018 e 2019, listas de melhores de 2017 e 2018, porque nesses anos não acompanhei o circuito brasileiro do início ao fim). Mas não queria passar batido em mais um ano, uma vez que houve, de um modo incerto e inesperado, um calendário de exibições brasileiro, seja no circuito das plataformas de streaming, seja no de festivais online. Logo, a lista dos meus 20 preferidos (sempre o número, não vou mudar justamente neste ano em que ele aparece duas vezes) tem só filmes que tiveram alguma exibição pública no Brasil. Depois, mais seis filmes que destaco entre os vi por interesse maior ou curiosidade, mas que (até onde sei) não tiveram exibições públicas no país.
As duas listas estão em ordem decrescente de preferência (do 1 ao 20, do 1 ao 6).
* Os filmes que tiveram textos meus estão já com os links acoplados a seus títulos. Basta clicar e acessar o texto original.
** Os filmes que vi no Ecrã e no Nicho foram comentados em textos de balanço aqui neste blog.
Filmes com estreia comercial ou exibição em algum festival no Brasil
O Caso Richard Jewell (Clint Eastwood) visto no cinema
É o melhor dos Eastwoods recentes, com um domínio de ritmo, direção de elenco, estrutura narrativa e comportamento da câmera que só um grande mestre poderia ter.
Retrato de uma Jovem em Chamas (Celine Sciamma) cinema
Só pela cena do primeiro beijo já merece uma vaga nesta lista. Mas Sciamma revela um amadurecimento incrível em cada longa, culminando nesta jóia.
Viagem Fantasma (Stephen Broomer) Ecrã
Da natureza à abstração é um projeto de filme que tenho há alguns anos e resolvi retomar após a descoberta deste belo filme de Stephen Broomer, a partir das imagens amadoras de viagens feitas por Ellwood F.Hoffman, captadas nos anos 1960.
Ar Condicionado (Fradique) Nicho
Belíssimo filme da produtora angolana Geração 80. Uma maneira sui generis de narrar uma história simples e algumas cenas delirantes de antologia formam um coquetel poderosíssimo.
Dias (Tsai Ming Liang) Mostra SP
Não é tão forte quanto Cães Errantes, mas é forte o suficiente para mostrar que Tsai ainda está em forma, assim como seu ator, Lee Kang Sheng.
Martin Eden (Pietro Marcello) – cinema
O filme mais convencional de Marcello confirma sua boa mão como diretor e criador de imagens fortes em tramas que buscam alguma maneira de driblar o óbvio.
Luz nos Trópicos (Paula Gaitán) – Olhar
Paula Gaitán faz seu melhor filme. Mais do que isso: o filme vai crescendo até uma hora final muito forte, e um plano final de rara beleza, que nos faz querer continuar vendo as imagens.
Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso) Tiradentes
Um dos filmes mais fortes da nova geração de diretores brasileiros. Um dos muitos exemplos surgidos nos últimos três ou quatro anos de que o cinema brasileiro tem finalmente atingido um estágio animador, depois de algumas batidas de cabeça naturais pela necessidade de renovação.
Lua Vermelha (Lois Patiño) Mostra SP
Filme de mistérios, mais do que de mistério, de imagens inquietantes, mais do que belas, ainda que também belas, e um desenvolvimento que jamais resvala no óbvio.
Guerra (José Oliveira e Marta Ramos) Mostra SP
Filme de amigos. Vítima de uma dureza maior para não soar tendencioso ou agraciado pela generosidade do contato pessoal? Creio ter maturidade para fugir desses riscos. Na dúvida, fiquem com as imagens fortes criadas pelos diretores, e com o último trabalho do também amigo José Lopes, falecido em dezembro de 2019.
Campo (Tiago Hespanha) – cinema
Mais um filme surpreendente do ainda surpreendente cinema português, dentro de um registro que eles dominam bem, o documentário contemplativo e ensaístico.
Monos – Entre o Céu e o Inferno (Alejandro Landes) – cinema
Tinha passado batido por mim esta estreia do colombiano Monos nos cinemas brasileiros. Como não pisarei numa sala de cinema antes de uma vacina, nem acompanhei as estreias de perto. Mas vi que estava em ótima posição na lista do Ruy Garnier e fui conferir, encontrando um filme cheio de ideias visuais, que me lembrou um Los Conductos (o belo filme de Camilo Restrepo) mais redondo (embora também mais enigmático em suas implicações políticas) e inspirado. Anotado o nome de Landes entre os cineastas a serem seguidos de perto.
61. A Verdade Interior (Sofia Brito) Ecrã
Belo filme que mostra, entre outras coisas, o processo criativo de James Benning, mais organizado por sensações do que pela razão, em que a diretora assume sua dificuldade com a língua inglesa, humanizando-se diante da câmera por sua fragilidade na comunicação.
A Forma do que Está por Vir (Lisa Marie Malloy e J.P. Sniadecki) Ecrã
Lembra Andarilho e Acidente, de Cao Guimarães, e os diretores tiveram a sorte de encontrar um senhor que não é só hippie, mas uma figura sui generis, dessas que seguram um filme desse tipo. Ele se chama Sundog, o que sugere uma aproximação (homenagem? brincadeira?) com o compositor maldito Moondog, falecido em 1999, cuja aparência era bem semelhante a do protagonista desse filme.
Technoboss (João Nicolau) cinema
Poderia ser um filme de ator, pois Miguel Lobo Antunes, gestor cultural e irmão do escritor António Lobo Antunes, domina o filme e o chama de seu. Mas João Nicolau também mostrou que evoluiu como diretor em relação a seus outros longas. Faz um filme bem forte e esquisito, sendo que a esquisitice também é parte determinante de sua força.
Não Há Mal Algum (Mohammed Rasoulof) Mostra SP
Quatro episódios mostrando a dor de se matar um ser humano. O tema se impõe e surge como um choque, num filme que, mesmo quando aposta no convencional, pode nos surpreender. Meu episódio preferido é o último, o que ajuda a tornar o todo mais impressionante.
A Pastora e as Sete Canções (Pushpendra Singh) Mostra SP
Parece um filme que eu via na Mostra dos anos 1990, e isso é um elogio, porque naquela época ainda era possível sermos surpreendidos por algo alienígena no cinema contemporâneo.
Sportin’ Life (Abel Ferrara) Mostra SP
O melhor dos filmes recentes de Ferrara. Dá conta de sua recente carreira, de sua parceria com Willem Dafoe e da pandemia, que ele mostra filmando as ruas vazias de Roma.
Vento Seco (Daniel Nolasco) Olhar
Sexo explícito homossexual num Brasil mais conservador do que nunca. Mas isso seria pouco do ponto de vista cinematográfico, embora seja muito como chacoalhão em mentes fracas. A questão é que Nolasco tem uma câmera segura, que valoriza as cenas de sexo e flerte. Tem momentos que lembra o Mascaro de Boi Neon, mas são poucos e não anulam a força do longa.
Yamiyhex – As Mulheres Espírito (Sueli e Isael Maxacali) – Tiradentes
Filme de olhar raro, que mostra um desejo de contornar todas as convenções cinematográficas possíveis.
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+ (menções honrosas)
Be Natural: A História Não Contada da Primeira Cineasta do Mundo (Pamela B.Green) – cinema
Partida (Caco Ciocler) – cinema
É Rocha e Rio, Negro Léo (Paula Gaitán) – Ecrã
O Oficial e o Espião (Roman Polanski) – cinema
Três Verões (Sandra Kogut) – Spcine
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Filmes que não tiveram exibição pública no Brasil
Dwelling in the Fuchun Mountains (Gu Xiaogang)
O lado paisagista de Jia Zhangke é acentuado neste filme que procura integrar as histórias das vidas que mostra às belas paisagens chinesas. É um filme muito bonito, mas essa beleza toda parece servir à ideia de comunhão com a natureza e suas estações, criando planos difíceis de esquecer, como um enorme, em que o moço nada uma boa distância e ainda entabula um longo diálogo.
Nunca Raramente Às Vezes Sempre (Eliza Hittman)
Duas adolescentes viajam a Nova York para que uma delas possa abortar. Dessa trama simples Hittman extrai um mundo bem singelo e verdadeiro, filmado de modo a nos mostrar o aprendizado das duas personagens ao enfrentar as penúrias da vida.
The Woman Who Ran (Hong Sang-Soo)
Como sempre em Hong Sang-soo, o filme vai se insinuando, como quem não quer nada, e no final estamos vidrados, querendo mais.
Relic (Natalie Erika James)
Um filme sobre o envelhecer do corpo feminino e sua aceitação. Três gerações de mulheres enfrentam os fantasmas desse envelhecimento sem se dar conta que há uma transmissão de experiência entre elas. É o filme de horror mais belo que vi no ano passado.
First Cow (Kelly Reichardt)
Talvez seja o filme mais rigoroso e formalista de Kelly Reichardt, com um enquadramento 1.33 que reforça o posicionamento das pessoas dentro dos recortes de paisagens que ela filma muito bem.
On Paradise Road (James Benning) O filme pandêmico de Benning trabalha mais uma vez com duração e simetria, apenas com tomadas internas, dentro de sua própria casa. O momento mais notável é quando vemos Uma Aventura na Martinica, de Hawks, na TV. Dentro de um plano imóvel e longo, o ritmo e o movimento do melhor cinema clássico americano.