O cinema de Rudolf Thome funciona em ciclos, conforme a criatividade do realizador move-se de um estilo a outro, de umas referências a outras, ou conforme os ventos do cinema moderno o levam. Começa sob o signo do cinema B americano já filtrado pelo primeiro Godard, passa para a pós-nouvelle vague de Garrel e Eustache, aproxima-se de Rohmer nos anos 1980, tendo seus dias de Jean Rouch um pouco antes, antecipa Emmanuel Mouret com a trilogia “formas de amar”, e por aí vai. Está longe de ser um grande diretor, mas não é desagradável ver seus filmes. Esta série de revisões e descobertas faz jus a um cineasta que não é tão ruim quanto eu pensava pelas visões anteriores, e até tem seus momentos mais fortes, embora não tenha aquilo que se possa chamar de obra-prima, nem algo perto disso.
Supergirl (1971) e, principalmente, System Without Shadow (1983) e Tarot (1986), tornaram-se meus preferidos entre todos os filmes de Thome que vi (foram quinze longas, todos de 1969 a 1989). Supergirl é um telefilme, mas isso realmente não o prejudica, pois os cineastas novos alemães sempre souberam buscar financiamento da TV mantendo uma certa liberdade de criação (talvez total, dependendo do financiamento ou da fama prévia do diretor). Um filme que já começa sob o signo do rock e da deambulação, e sobe alguns degraus no charme do hard rock psicodélico com imagens de clima hippie e um colorido berrante que já estavam em Rote Sonne (1970) e no preto e branco de Detektive (1969), seus dois primeiros longas, feitos também sob o signo do primeiro Fassbinder (Uschi Obermaier como equivalente a Hanna Schygulla e a repetição de Ulli Lommel em Detektive e O Amor é Mais Frio que a Morte). Thome estava então bem sintonizado com a nata do novo cinema alemão, dividindo influências, atores e temas.
A caminhada de uma moça, que intuímos ser a personagem título, por um campo, com a câmera baixa a seguindo em panorâmica; teclado e guitarra distorcidos entoando uma bela melodia… que belo início de filme esse de Supergirl. Difícil manter o nível, mas Thome se esforça bastante e consegue alguns outros trechos bem belos, principalmente pelo fascínio que essa super garota causa nos homens ao seu redor. Talvez seja esse o limite desse diretor, pela amostra que tive até aqui: nunca um grande filme por inteiro, mas alguns grandes momentos em filmes de intensidades diversas. Curiosamente, é um filme com Marquard Bohm (como vários de Thome nesse período) que tem cinema como um dos motivos principais, como Cuidado com a Puta Sagrada, longa de Fassbinder lançado no mesmo ano. E é curioso, e um tanto irônico, que o filme mais cinematograficamente intenso de Thome nos anos 1970 seja justamente produzido pela televisão alemã.
Fremde Stadt (1972) é uma coluna do meio entre o Wenders de Summer in the City (ambos são rodados em preto e branco e têm rock por todos os lados) e os filmes de pequenos gangsters do início da carreira de Fassbinder – sintonia forte entre O Amor é Mais Frio que a Morte e Deuses da Peste, primeiro e terceiro do Fassbinder, e Detektive e Fremde Stadt, a estreia e o quarto longa de Thome). Nesse sentido, Fremde Stadt é uma despedida desse registro, com uma realização mais madura e num ano em que Fassbinder já estava na onda de Douglas Sirk e Wenders também ameaçava tomar outro rumo. É bem filmado, em scope (Detektive, por sinal, é um desperdício de scope). Se Supergirl é um salto evolutivo comparado aos dois primeiros longas, Fremde Stadt representa um acerto de contas com esse tipo de produção, o término de uma fase inicial que seria superada, no sentido de ser deixada de lado por ele mesmo, primeiro pela forma livre, depois pelo domínio das referências e da narrativa, já nos anos 1980.
Os três últimos filmes de Thome nos anos 1970 apontam a virada, e formam uma espécie de interlúdio experimental: Made in Germany and USA (1974) e Tagebuch (1975) mostram uma mudança de referencial, do cinema B americano com pitadas do Godard de Acossado e Bande a Part (Godard, por sua vez, paródico do cinema B americano) para o cinema de Philippe Garrel e Jean Eustache (com o Rivette de 1969-1972). Descrição de uma Ilha (1979) é uma virada documental que já se ensaiava nos dois outros longas. Os três filmes têm a duração mais alongada com relação aos seus outros longas. Made in Germany and USA tem duas horas e vinte e cinco minutos. Tagebuch tem duas horas e meia. Descrição de uma Ilha tem três horas de duração. Made in Germany and USA marca o início de uma nova fase que tem mais ligação com o trabalho de Thome nos anos 1980, o das crises de casais e cirandas amorosas, bem ao gosto dos franceses, embora nos anos 1970 fossem bem ao gosto do mundo todo. É como uma passagem direta da nouvelle vague francesa para a pós nouvelle vague dos diretores mencionados acima, em que motivos, tons e situações (cenas em banheiras, cenas de um casal na cama, arrumações na casa, pequenas reuniões com amigos e as deambulações que já apareciam nos filmes anteriores, mas agora em outra chave) se repetem, filme a filme, criando uma impressão de obra única em capítulos, que começa exatamente aqui.
Em Tagebuch, baseado livremente em Goethe (As Afinidades Eletivas), o próprio Thome interpreta o protagonista Eduard, um fotógrafo não muito bem sucedido, casado com uma escritora (ele, aliás, se parece um pouco com Garrel, embora se pareça ainda mais com o Ray Shulmann, baixista do Gentle Giant). Os flertes com o cinema B americano já estão totalmente ausentes (no longa anterior, até por se passar em parte nos EUA, ainda há qualquer coisa dessa influência). Mas essa desdramatização eustachiana exagera naquele típico banho maria que Thome compartilhava com o Wenders da época. O problema, de fato, já está em Made in Germany and USA, talvez porque o cinema alemão não seja tão bom de blá blá blá quanto o francês.
Descrição de uma Ilha reflete o gosto dos alemães pelo exotismo e é o melhor desses três últimos filmes dos anos 1970. É um equivalente daquelas bandas alemãs de hard progressivo dos anos 1970 que incorporavam percussões e ritmos africanos ou latinos ao que chamamos de Krautrock (o termo já deixou de ser pejorativo para se tornar um tipo de classic rock “made in Germany”). Uma equipe de estudiosos vai pesquisar a vida na remota ilha de Vanuatu e descobre um paraíso. Aqui a duração é mais justificada, o tempo da descoberta, do costume, da ambientação ao lugar distante e exótico. Tanto Tagebuch quanto Made in Germany and USA e Descrição de uma Ilha trabalham num encontro entre o documental e a ficção. Os dois primeiros estão mais para a ficção, o terceiro, mais para o documental. São filmes parentes; não irmãos, mas primos, Tagebuch e Descrição de uma Ilha (primo caçula) com Cynthia Beatt (que codirige o segundo).
O Thome dos anos 80 me parece mais maduro (no fim da década, mais irregular). Os filmes parecem atingir um equilíbrio maior na dramaturgia, mesmo naqueles que não funcionam. A década começa com um filme diferente de tudo que Thome havia feito até então: Berlin Chamissoplatz (1980), em que uma estudante engajada se apaixona por um arquiteto chegado numa especulação imobiliária, numa variação da regra dos opostos que se atraem e têm suas personalidades aproximadas até um certo ponto. É uma entrada nos anos 1980 dentro de uma narrativa mais próxima do tradicional, em que os momentos de invenção aparecem discretos espalhados na decupagem e na montagem. Thome tem mania de terminar seus filmes, desde Detektive, o primeiro longa, de um jeito meio decepcionante, por vezes até ousado nesse gesto. Neste (e em Sete Mulheres, sobre o qual falarei mais tarde) ele se supera: propõe um final que realmente fortalece todo o filme.
Seu longa seguinte, System Without Shadow (1983), une o companheiro de rota ao herói dos anos 1980 com o protagonismo de Bruno Ganz, que com Wenders tinha filmado O Amigo Americano (1977) e com Rohmer, A Marquesa d’O (1976), ambos sendo dos filmes mais fortes desses diretores. Ganz tinha sido também o Nosferatu de Herzog, o que confere a seus personagens, a partir de então, um aspecto meio sinistro, que Alain Tanner explorou em seu Na Cidade Branca (1983) e Thome explora mais ainda aqui, aproveitando-se que o personagem é um técnico em informática introspectivo, mas com um companheiro de esquisitices mais ativo no personagem de Hanns Zischler. E aos poucos, influenciado pelo amigo, vai se tornando como o personagem de O Amigo Americano. Com um cineasta retrospectivo como Thome, as coisas tendem a um movimento parcial de retorno, e o próprio filme vai se movendo na direção dos primeiros longas, quando há a ideia do roubo de um banco. Por outro lado, a referência da pós nouvelle vague dos filmes intermediários volta a estar presente numa citação de um dos mais belos filmes de Jacques Doillon (La Femme qui Pleure), que Ganz e sua amante vão ver no cinema. E tem os momentos nas montanhas, com a neve criando uma paisagem impressionante e os personagens caminhando por ela. Não me admiraria em saber que Thome fez esse filme para poder filmar essas cenas. Na mistura de gêneros, Thome nunca havia acertado como aqui. System Without Shadow tem ainda um dos finais mais belos entre todos os seus filmes, com Bruno Ganz derrotado em cima de uma garagem vertical. E é um dos finais mais típicos (percebemos mais claramente que estamos vendo os últimos segundos do filme).
Com essa sensível evolução de um filme a outro, chegamos a Tarot (1986), que assume mais claramente a herança rohmeriana (há citação explícita do cineasta francês, novamente numa sala de cinema) e traz o wendersiano Rudiger Vogler como um dos atores (embora o filme, ao contrário de System Without Shadow, tenha muito pouco de Wenders). Aos poucos vamos entrando no jogo e conhecendo melhor os personagens, que vão se abrindo uns aos outros de modo bem interessante. Eles representam uma retomada do quarteto amoroso de Tagebuch, ou melhor, de As Afinidades Eletivas, de Goethe: Charlotte, Eduard, Otto e Ottilie. Mas aqui há mais dramaturgia e menos experimentalismo (sem relação entre essas escolhas e a superioridade de Tarot sobre Tagebuch – aliás, esses dois filmes permitem uma boa comparação entre o cinema de Thome, como também o europeu, entre os meados dos 70s e os meados dos 80s). Como o assunto margeia a criação cinematográfica, mas principalmente os jogos românticos, não há grande dificuldade de acompanhar as frequentes conversas, as crises, as idas e vindas dos personagens. Não é inventivo como Rohmer, nem explosivo como os melhores filmes de seus companheiros do cinema novo alemão. Mas tem um fatalismo que lembra outros cineastas da nouvelle vague francesa, como Truffaut, e é possível perceber que aqui Rudolf Thome alcançou algo que seus filmes anteriores apenas ensaiavam.
A década termina com a trilogia “formas de amar”, que compreende, respectivamente, O Microscópio (1988), O Filósofo (1989) e Sete Mulheres (1989). Os três são com a atriz croata Adriana Altaras (um rosto rohmeriano, por sinal). O segundo é um filme sensação, dos mais famosos do diretor (ao menos para frequentadores da Mostra SP), mas, a meu ver, o pior. É aquele em que fica mais evidente a fórmula do cinema de arte daqueles tempos: um erotismo libertário, algumas discussões intelectualizadas e nenhum drama realmente interessante. Não está muito acima de um filme corriqueiro das sessões de soft porn na TV. Como não há também uma forma inventiva (pelo contrário, Thome parece mais desleixado), pouco se salva além de alguns poucos diálogos. O Microscópio é mais ligeiro, como uma comédia de junções e separações sem os diálogos sub-filosóficos do filme seguinte, e com um certo frescor que parecia capaz de segurar até o fim o interesse na trilogia. No tom, está mais próximo de Tarot do que de O Filósofo. Fechando a trilogia, Sete Mulheres é o mais bem humorado, ainda que o humor de Thome, como vimos, é bem estranho, meio godardiano, pouco comercial (vendê-lo como uma comédia seria um erro crasso). O filme parece uma paródia da carreira do diretor em forma de balanço. Tem romance, ação, muitas conversas, algum rock e muita ironia. Talvez tudo isso o torne o mais interessante dessa trilogia trôpega.
Não foi possível ainda conhecer todos os filmes do diretor, nem mesmo rever todos que conhecia. Seus trabalhos dos anos 1990 em diante, dos quais conheço dois filmes, Just Married (1996) e Falando com Vênus (2001), haviam me provocado, quando os vi, a mesma sensação de O Filósofo, ou seja, e de um diretor pouco ou nada interessante. Essa redescoberta de seu cinema sugere algo diferente.
Um top 7 dos 15 filmes vistos de Rudolf Thome ficaria temporariamente assim:
1. System Without Shadow
2. Tarot
3. Supergirl
4. Berlin Chamissoplatz
5. Descrição de uma Ilha
6. Sete Mulheres
7. Fremde Stadt
* obs: top 7 porque os quatro últimos mais ou menos se equivalem, e não gosto de nenhum outro o suficiente para colocar na lista, aumentando para 10.