Marighella

Os modelos de Wagner Moura para a realização deste filme, confessos ou inconfessos, foram os dois longas Tropa de Elite, o cinema dos irmãos Dardenne e o cinema de fluxo. Penso como seria se os modelos fossem O Traidor, de Marco Bellocchio ou o cinema político italiano dos anos 1970.

Moura parece acreditar que a melhor maneira de inserir o espectador dentro de uma ação é colocando-o no meio da cena, usando para isso uma câmera na mão, movendo-se trôpega e indecisa mesmo quando a cena implica apenas em observação calculada de alguma situação, como acontece logo no início, um pouco antes de vermos o protagonista entrar no cinema onde será baleado.

Fico me perguntando se alguém, diante de uma situação dessas, prefere chacoalhar a cabeça ou realizar com ela vários movimentos horizontais, como se estivesse tentando tirar água dos ouvidos ou balançando ao som de um rock. Penso que essa maneira escolhida para a direção de Marighella seja a menos realista possível, pois reflete muito mais uma orientação modificada por alguma substância do que pela nossa observação real do dia a dia. Nosso campo de visão é maior que o campo de visão de uma lente, mesmo que seja uma grande angular. Logo, não faz sentido colocar o espectador no meio de uma ação (exemplo: a cena do assalto ao banco) se a visão dele for muito mais prejudicada do que seria a de uma testemunha qualquer. Mas essa balela da sensação real é muito difundida atualmente, e a câmera no tripé é confundida com academicismo por muita gente, cinéfilos e profissionais de cinema que parecem desconhecer 90% da história do cinema.

A estética de Marighella é que pode ser chamada de acadêmica, já que é o beabá da realização cinematográfica e televisiva há pelo menos uns vinte anos. Privilegia o corre-corre no lugar da observação, a sensação no lugar da reflexão, a sujeira no lugar da limpeza. Com a exceção do primeiro binômio, e mesmo assim parcialmente, todas as outras escolhas não são necessariamente ruins, mas tornam-se ruins quando parecem as únicas saídas de direção, seja quando os personagens correm ou fogem, seja quando observam ou pensam, ou ainda quando tais escolhas submetem a ação a uma confusão física e mental. É precisamente o que acontece aqui.

Temos uma câmera mal pensada e mal operada por cerca de duas horas e meia. Temos ainda slogans saindo da boca de personagens (alguém devia ter avisado que o momento da aula – “não é revolução, é golpe” – é ridículo), montagens paralelas que promovem dualidades óbvias e atores mal aproveitados. Um desastre completo? Quase. Em alguns momentos, Bruno Gagliasso consegue driblar a caricatura de seu personagem vilanesco e atingir algo mais complexo. Adriana Esteves entrega alguma dramaticidade e Seu Jorge, ao contrário do que muito se disse, não compromete. Wagner Moura foi parcialmente bem sucedido ao evitar o maniqueísmo, embora a pobreza e obviedade dos diálogos lute contra e a ambiguidade surja apenas em raros momentos, sufocada pelo retrato dos militares como sádicos, covardes e ignorantes (o que são, de fato, como provou o brasil de bolsonaro), mas artisticamente uma nuance mínima que seja seria bem-vinda.

Existe um único momento em que a opção pela câmera no meio da ação é bem-sucedida, tanto pela opção em si quanto na execução: no tiroteio que acontece bem na metade do filme, em que Marighella surge para ajudar os revolucionários perseguidos pelos fascistas. A sequência ainda termina com um suicídio impressionante, que me lembrou um assassinato de Os Infiltrados, de Martin Scorsese. Por fim, os momentos de quebra da quarta parede são interessantes também.

É pena que um filme tão importante, lançado num dos diversos momentos em que o país abraçou o fascismo sem precisar tapar o nariz, seja tão irregular política e esteticamente.