A liberdade com a qual Paulo Rocha trabalha em A Raiz do Coração (2000) é invejável. Não importa se um carro passa com rotação aceleradíssima quando não deveria passar, pois todo o som do filme respira uma invenção totalmente liberta dos padrões que se ensina nas escolas.
Um político (Luis Miguel Cintra) que parece derivado do Paulo Autran de Terra em Transe e aparece vestido de Santo Antonio em pregações pela limpeza de Lisboa, uma hermafrodita que tem o poder de virar homem ou mulher conforme abandona as perucas, uma cafetina de poderes políticos que não podem ser desprezados, um policial em crise de identidade, que se envolve com a cafetina e sua filha hermafrodita Silvia (Joana Bárcia), um grupo de queers marginalizados e resistentes ao fascismo do dia a dia. Esse é o caldeirão de loucuras e prazeres que o filme nos mostra, totalmente fora das amarras narrativas costumeiras. A direção de fotografia é de Elso Roque, que trabalho com Manoel de Oliveira, Lauro Antonio, e em outros filmes de Rocha.
Há um momento que de tão belo chega a doer. Logo no início do filme, o dilema de Silvia é apresentado em uma bela canção, entoada por ela enquanto a câmera foca um barquinho navegando no chafariz. Uma cena noturna, melancolicamente portuguesa, tocante e que nos prepara para entender o filme de uma forma igualmente mais livre.
Essa poesia só se alcança com liberdade. Não só a liberdade do diretor que pode filmar o que quer sem pressão externa. Essa é importante, mas nem sei se é o caso. Refiro-me à liberdade de não seguir quaisquer padrões e não dar a mínima para os signos do contemporâneo. Isso só um mestre consegue. Como Paulo Rocha, dos maiores diretores portugueses, alto representante do cinema moderno do país.