
Com a pandemia, a Mostra de Cinema de Gostoso ganhou também sua versão online. Trocamos o vento da praia pelo abafamento de nossas casas neste verão. Muito se perde, mas os curadores tiveram uma boa solução para que também se ganhasse. No caso, os filmes do acervo e as sessões especiais. Seis filmes novos foram escolhidos, numa espécie de retrospectiva do que rolou durante o ano em outros festivais. Os nomes envolvidos com esses filmes, por sua vez, escolheram outros seis do acervo, entre contemporâneos como Bicho de Sete Cabeças e clássicos incontornáveis como São Bernardo. Há ainda uma mostra em parceria com o site Limite, que mostra três filmes brasileiros políticos de 1968: O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl, Desesperato, de Sérgio Bernardes, e A Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite. Não sou muito entusiasta do filme de Gomes Leite, mas dos outros dois gosto bastante. Sobre Desesperato escrevi há um bom tempo, na Contracampo (tem vinte anos esse texto). Como se fosse pouco, há ainda os filmes restaurados, divididos em duas sessões: Xanadu e Boi de Prata.
Comecemos por estas últimas sessões. A Xanadu contou com os dois primeiros trabalhos de Carlos Reichenbach, com a parceria de Antonio Lima: As Libertinas (1968) e Audácia – A Fúria dos Desejos (1970). São filmes de episódios. Em ambos o de Reichenbach é o maior. O de As Libertinas, Alice, é fraco, embora em comparação com o de Antonio Lima, Angélica, pareça melhor. O longa vale mesmo pelo episódio de João Callegaro, Ana, que envolve chantagem e uma troca de casais no final. Também é bom o prólogo (“vai uma chupadinha aí”, perguntado por um tarado a uma moça que chupava um picolé).
Outra coisa é Audácia. Composto por um prólogo que passa a limpo a boca do lixo e o cinema brasileiro da época (com falas duríssimas de um super lúcido Rogério Sganzerla) e acompanha parte das filmagens de O Profeta da Fome, de Capovilla, com José Mojica Marins como um faquir. O episódio central, ou primeiro episódio, A Baladíssima dos Trópicos x Os Picaretas do Sexo, que ocupa a maior parte da duração do longa, mostra a cineasta Paula Nelson tentando fazer um filme que escape às exigências dos produtores. Hilário em muitos aspectos e mordaz na demonstração de como um bajulador pode destruir uma pessoa, o episódio é bastante responsável pela força geral do longa. No episódio seguinte, Amor 69, Antonio Lima mostra alguma evolução com relação ao seu terrível episódio de As Libertinas. Mas é de longe o momento mais frágil de Audácia.
Boi de Prata (que compõe a sessão de mesmo nome), conforme o texto da pesquisadora Flávia Assaf que o acompanha, é um dos filmes com que a Embrafilme procurava uma descentralização do cinema brasileiro. Rodado no sertão do Rio Grande do Norte pelo potiguar Augusto Ribeiro Jr, é o primeiro trabalho de Walter Carvalho como diretor de fotografia de uma ficção. O filme é irregular, mas tem momentos de muita força, incluindo alguns de ação, e um tipo de invenção que o próprio Carvalho entendeu como glauberiana. De fato, há ecos do Dragão da Maldade no filme de Ribeiro Jr., mas o conteúdo político é direto, jamais alegórico, e talvez por isso o filme nunca tenha tido exibição comercial.
Os filmes da mostra Acervo, por serem bem conhecidos de todos, não irei comentar no momento. Não pude rever nenhum dos filmes recentemente, a não ser São Bernardo, para um curso que ministrei recentemente chamado “O Cinema e a Palavra”, e continua um assombro. Um dos maiores filmes feitos no mundo em todos os tempos, sem exagero. Vale, porém, destacar qual filme é escolha de cada um dos diretores dos filmes da sessão contemporânea:
Bicho de Sete Cabeças foi escolhido por Juliana Vicente (Cidade Correria)
Claro foi escolhido por Paloma Rocha e Luís Abramo (Antena da Raça).
Copacabana Mon Amour escolhido por Ary Rosa e Glenda Nicácio (Até o Fim)
Martírio, por Isael e Sueli Maxacali, Carolina Canguçu e Roberto Romero (Nũhũ yãg mũ yõg hãm: essa terra é nossa!)
São Bernardo, por Raphael Barbosa e Werner Salles (Cavalo)
Vidas Secas, por Isaac Donato (Açucena)
Por fim, há a escolha da curadoria: o curioso curta de Ozualdo Candeias, Cinemateca Brasileira, de 1993. Importante vermos esse belo documento num momento em que a instituição está sendo tão maltratada.
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* O outro lado, “Os novos de Gostoso”, vem a seguir