
São aproximadamente dez minutos já na última das quatro partes que perfazem 13 horas e meia de filme. Mas esses dez minutos, levados pela melhor peça músical já composta (o Adágio do “Concerto para Piano em Sol Maior”, de Ravel, que já havia sido usada em outro filme argentino, El Acto en Cuestión, de Alejandro Agresti), alcançam, num raro rompante de sublime inspiração, o melhor de Júlio Bressane (na ideia de explicitar a feitura do filme) ou de Jonas Mekas (na textura de imagem). Começa com pequenas aranhas numa teia quase invisível. O luminoso sorriso de Elisa Carricajo que entra em foco lentamente nos leva a uma espécie de teste de elenco, em que as quatro atrizes principais aparecem olhando e gesticulando para a câmera sem que as ouçamos (a peça de Ravel toca inteira e ocupa toda a banda sonora, para o deleite de qualquer apreciador de boa música). Aí vemos a risada solta e espontânea de Pilar Gamboa, como se tivesse sido apanhada desprevenida pela câmera, o andar de Valeria Correa perto de um riacho, o caminhar desajeitado (acompanhado de uma câmera também desajeitada) de Laura Paredes perto de uma estrada de terra. Elas são filmadas em contato com as paisagens, ora mostrando os seios (talvez para mostrar desinibição, muito antes de algo fetichista, pois esses atos são desprovidos de erotismo), ora dizendo coisas que não ouvimos. Por trás dessa brincadeira bressaniana – um desvelar de making of com um “deixar a montagem na conta do espectador” – está a liberdade que Mariano Llinás procura imprimir em todo o seu filme.
A estrutura do longa é curiosa. Seis episódios divididos em quatro partes que duram entre 3h10 e 3h30. Os episódios têm durações bem variáveis. Os dois primeiros, de horror e acerto de contas musical com discussão de relacionamento, respectivamente, dividem a primeira parte. São episódios ainda presos a uma certa tipologia dos gêneros, ainda que Llinás sempre insira uma ou outra brincadeira para dinamitar os códigos desses gêneros. O terceiro, uma trama de espionagem cheia de idas e vindas no tempo e subtramas que desafiam a lógica do típico filme de espionagem, ocupa toda a segunda parte e mais da metade da terceira parte (mais de 5 horas do total). O quarto episódio, espécie de escancaramento do processo criativo, completa essa terceira parte e termina mais ou menos na metade da quarta e última parte, quando Llinás aparece novamente para anunciar que as atrizes não estarão no quinto episódio, mas voltarão no sexto e último. Não contente em nos driblar pela duração de seu filme, ele também mexe com nossas expectativas na duração de cada episódio, e de cada história contida nesses episódios. Tal estrutura clama por uma liberdade que afasta o espectador de qualquer condicionamento. Ele deve estar diante do filme para esperar tudo que pintar, ou não estará diante do filme.
O quinto episódio é o mais curioso: uma atualização de Une Partie de Campagne, a obra-prima inacabada de Jean Renoir. No lugar dos passeios de barco, passeios com aviões de manobras. Não há som por uns bons minutos, até que passamos a ouvir o som do filme de Renoir. Atualização, sim, mas o episódio é rodado inteiramente em preto e branco. É um divertimento localizado num ponto, já próximo do fim, em que tudo se pode esperar do filme, e tem mais ou menos a duração do filme de Renoir, perto de 40 minutos. O sexto episódio tem pouco mais de 20 minutos e talvez por isso seja o mais coeso, lembrando Guy Maddin e Alexander Sokurov. Prisioneiras do deserto, as quatro atrizes buscam a liberdade tematizada por um banho no rio, num episódio todo filmado com intertítulos e trilha espacial, imagens distorcidas e com um efeito de mata-borrão, como em Mãe e Filha. E aí vêm os créditos finais, que funcionam como um sétimo episódio, maior que o sexto (tem pouco mais de 30 minutos), no qual vemos toda a ficha técnica desse filme que levou anos para ser feito sobre uma paisagem de ponta cabeça na maior parte do tempo. Novo truque de um cineasta que aqui já se prova totalmente livre.
Curiosamente, os dois episódios mais fracos (e maiores e mais dispersos, o que talvez não seja coincidência) são aqueles que têm também os momentos mais belos do filme todo. O quarto praticamente se encerra com o clipe dos testes de elenco sob a música do Ravel, já anunciado no primeiro parágrafo deste texto. O terceiro tem a belíssima sequência em que o prisioneiro começa a se situar no mundo e perceber que está na América do Sul, ao observar as constelações de ponta cabeça. A ideia de inversão, de todo um mundo e um contexto invertido, está pelo filme todo (mais claramente a partir do terceiro episódio), mas se pronuncia com força nessa observação das estrelas e nos créditos finais.

Apesar dessa sequência primorosa, o filme é das quatro mulheres principais, de quatro mulheres jovens que não se enquadram facilmente dentro do padrão de beleza e sexualidade das estrelas de cinema, mulheres ou homens. Não são glamourosas, não são especialmente atraentes, ou não atraentes como estrelas de cinema costumam ser (o cinema moderno trouxe homens e mulheres mais parecidos com o trivial, mas estes se tornaram glamourosos com o tempo, tornando necessária uma atualização). Mas elas têm carisma, todas elas. Fotografam muito bem, são íntimas da câmera, tornam-se mais belas. Quando nenhuma está em cena, o filme geralmente perde bastante de seu interesse, talvez porque os atores sejam sem graça, com a exceção do sequestrado observador das estrelas.
No fundo, esse enxergar pela metade, a visão míope que propõe Llinás com seus desfocados, alguns deles radicais, nem sempre ajuda a nossa experiência com essas narrativas entrelaçadas, por mais que nos acostumemos com a opção (na verdade, quando o desfocado é radical, o filme pode se tornar tão belo como uma tela impressionista). Muitas vezes a radicalidade se torna um entrave, um jogo estiloso que nos distancia dos personagens. Porque, afinal, há personagens, principalmente as quatro mulheres, que mudam de características conforme os episódios mudam, ou dentro mesmo de um episódio, como o terceiro. Talvez seja proposital essa colocação de obstáculos entre nós e elas. O desfocado está em acordo com a maneira como ele nos mostra as personagens reagindo às situações e aos estímulos de outros. Como as sobreposições de imagens estão em acordo com os retratos mutáveis das quatro atrizes e suas personagens. Sentimos uma certa coerência na representação que perpassa a variedade de gêneros cinematográficos e as diversas histórias.
Mas se ele busca mesmo a liberdade, como penso, por que seria necessária alguma coerência ou mesmo alguma adequação entre os momentos de radicalidade formal (que é pontual, reservada aliás a alguns dos melhores momentos do filme) e seu conteúdo? Uma adequação entre forma e conteúdo é sempre bem-vinda em arte, mas certos tipos de filmes prescindem dessa adequação, pois são construídos pelo caos e para o caos. La Flor é um deles. É um mosaico nebuloso que nos leva a uma alternância constante entre frustrações e entusiasmos, mais do que suficiente para passar as 13 horas e meia de duração com grande interesse. Precisava ter essa duração? Não sou daqueles que tem pudor de dizer que não, porque também faz parte da atividade crítica observar essas coisas, a duração dos planos como a duração dos filmes, mas me parece que os momentos mágicos se beneficiam do contexto e da longa preparação, de uma certa lentidão e da confusão dos sentidos. E assim vejo que o filme só tem sentido com a duração que ele apresenta. Se cortado, fará um outro sentido, que pode ser tão bom ou melhor, mas ainda assim seria outro. Lembremos de Out 1 – Noli me Tangere, do grande Jacques Rivette, que teve suas 13 horas abreviadas por ele mesmo para pouco mais de 4 horas, dando origem a um novo filme (renomeado Out 1 – Spectre), que incorpora imagens deixadas de fora da versão maior.