Olhar de Cinema 2021: Crime Culposo

Crime Culposo (Jenayat-e Bi Deghat, 2020), de Shahram Mokri

Carla Oliveira me alertou para a semelhança entre a sinopse deste filme iraniano e o que vimos no dia anterior, o russo Conferência. De fato, vendo os dois filmes, a semelhança é ainda maior. Tem até um senhor descendo degraus com algumas bebidas, com a diferença de que ele o faz ao ar livre enquanto no filme russo está dentro de um grande cinema. Os dois filmes narram casos trágicos provocados dentro de um cinema, com muitas vítimas e alguns sobreviventes que ficaram com traumas. No russo, a câmera é rigorosa, os personagens exalam crueldade e o trauma é coletivo. No iraniano, a câmera é mais solta, por vezes na mão, mas bem operada, o que faz toda a diferença (lembrando que nada tenho contra a câmera na mão, ou mesmo deslizando sobre o ombro do operador, mas tenho muito contra câmera mal operada). Há um certo interesse pela arte e pela vida, os personagens são mais variados, entre os amorosos e os autoritários, os psicopatas e os sonhadores, e o trauma está mais distante na cronologia histórica.

Em Crime Culposo, temos uma versão poetizada, com uma boa dose de risco por tratar-se de uma ficção em cima de um evento real, do “Crime do Cine Rex”, famoso atentado político extremista em Abadan, no Irã, em 1978, durante a exibição de O Cervo (Masoud Kimiai, 1977). Duas exibições desse mesmo filme são marcadas dentro de Crime Culposo. Uma acontece num cinema prestigiado, outra ao ar livre, perto de uma nascente que nada reflete. Essas duas projeções acontecem em paralelo, com tantas pistas falsas e reiterações que até esquecemos uma informação importante dada pelo movimento da câmera logo no início: que uma está dentro da outra, no jogo de duplicidades e abismos que o filme trabalha com forte grau de mistério.

O que impressiona é a estranheza de tudo. Alguns diálogos parecem saídos de uma mesa de bar cheia de cinéfilas (isto é um elogio), e algumas situações, sobretudo com as moças da projeção próxima à nascente, são cômico-fantásticas, tão mais absurdas por estarem sendo vistas dentro de um cinema. O próprio comportamento da câmera, por vezes, abandona o naturalismo do testemunho e parte para movimentos fantasmagóricos e um tanto surpreendentes, como quando uma panorâmica nos leva à projeção do cinema e outra, dentro desta última, nos leva à projeção de O Cervo na mata. A construção em abismo fica ainda mais evidente.

Temos uma série incrível de repetições e espelhamentos. Os quatro incendiários do cine Rex e os quatro homens que estão sempre juntos esperando a última sessão (serão eles novos incendiários? suspeitamos disso o tempo todo e o final esclarece). As moças que são confundidas com irmãs e as personagens de O Cervo. A dupla oferta de um chá quente porque o outro estaria frio. As pequenas sessões de bruxaria no filme dentro do filme e a magia do boneco gigante em suas aparições. A projeção num cinema fechado e a projeção numa tela improvisada no meio do mato como diferentes maneiras de fazer um filme chegar a um público, qualquer que seja. As perguntas que se repetem: que filme é esse que vamos ver? Quem é Naimeh? Qual era o nome do irmão de Maryam em O Cervo? Quem dirige este filme? Quantas projeções temos ao todo? Na exibição de O Cervo ocorreu um incêndio criminoso. Na exibição de um outro filme, que homenageia O Cervo, pode haver outro incêndio criminoso. Repetições demais? Cá, como no filme. Propositalmente, não as evito.

Muitas das coisas que vemos em Crime Culposo podem parecer (e até são) erros ou descuidos de roteiro, continuidade ou mesmo decupagem, mas uma boa parte disso é intencional, invenção pura. O filme não é inteiramente bem sucedido, tem alguns trechos desinteressantes no miolo. Mas é estranho o bastante para movimentar qualquer programação de qualquer festival. Que venham outros dessa estirpe.

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