44ª Mostra Internacional de São Paulo – Parte 1

Seguem breves comentários sobre alguns filmes vistos na Mostra SP 2020. Antes, algumas observações:

– sim, faço mais breves comentários do que críticas propriamente ditas por acreditar que é uma forma rápida de lidar com um filme visto em festival antes que eu possa revê-lo. Como raramente consigo rever os filmes que vejo em festivais, fica um registro de minhas impressões, com a esperança de que sirvam para outras pessoas do mesmo modo que servem para mim. Por vezes, esses breves comentários se tornam pequenas críticas ou contêm algum pensamento sobre cinema, como o leitor pode observar na cobertura do Olhar de Cinema, neste mesmo blog.

– com relação à experiência online do Olhar, a da Mostra deixa a desejar no quesito streaming. Raro o filme que não trava, mesmo colocando a 720p (os filmes do Olhar foram todos vistos na maior qualidade possível). Entendo que a Mostra é um evento muito maior, com mais filmes e mais espectadores. Mas talvez haja um meio de evitar tantas travadas. Outra irritação veio com a vinheta. Sim, entendo que é necessário, mas podem dar a opção de abaixar o som, porque ela surge estourando, num volume muito maior que o do filme. Outra coisa irritante foi o pedido para votar assim que começam os créditos finais. Puxa, podiam colocar um aviso mais discreto, não interromper o filme dessa maneira.

– não sou capaz de escrever sobre Guerra no momento. É um filme que me atingiu duramente, pois mostra lugares e pessoas (quase todos que estão no filme) que conheci e aprendi a admirar graças aos diretores, José Oliveira e Marta Ramos. Assisti ao filme inteiro com aquela agonia da torcida para que fizessem um belo filme (agonia que obviamente me acompanha em qualquer exibição), amplificada por serem meus amigos os principais envolvidos, incluindo o saudoso ator e sábio José Lopes, com quem tive inúmeras conversas inesquecíveis quando em terras portuguesas. No final, achei um belo filme, e suspeito que consegui um certo distanciamento ao afirmar isso. Mas prefiro a cautela de não escrever antes que possa revê-lo com olhos mais livres, menos sentimentais.

Lua Vermelha, de Lois Patiño

O estilo de Pedro Costa continua gerando frutos. O espanhol Lua Vermelha me pareceu bem superior ao igualmente espanhol Longa Noite, visto no Olhar de Cinema. Não por se parecer ainda mais com o cinema de Costa, o que pode causar confusões, mas por fazer do estilo do cineasta português parte de um novo estilo, que Lois Patiño (em sua estreia em longa de ficção) pode chamar de seu. Um estilo baseado na luz fantasmagórica, nos enquadramentos e angulações que diferem dos de Pedro Costa o suficiente para criar uma nova assinatura, que reforça a anteriormente construída nos outros filmes de Patiño.

A natureza morta, a natureza e os acidentes geográficos, da natureza à abstração, os fenômenos metereológicos: a forma como o vento, as águas, os interiores são filmados por Patiño o afasta de Pedro Costa e o conecta a Tarkovski. Mas há algo do Sharunas Bartas dos anos 1990 também. Como sempre, uma vez que o referencial é constante, quase obrigatório no cinema contemporâneo, importa ver como se trabalha com ele.  

Na trama, um navio encalha na costa da Galícia, e um habitante local, Rubio, fica desaparecido. Três bruxas surgem para ajudar a procurar o corpo, mas o local continua habitado por mortos vivos, fantasmas à espera de alguma mudança, algum traço de luz. Ouvimos seus pensamentos. São poéticos, mas é um mérito que não se configurem como poesia imposta. Aceitamos naturalmente porque estamos num espaço-tempo alternativo, um outro mundo, algo como o oceano do Solaris de Tarkovski, no qual mergulhamos para uma investigação mais detalhada.

A insistência em mostrar os fantasminhas irrita um pouco. O efeito é interessante no início, depois começa a se tornar mais infame conforme se torna elucidativo demais. O mistério é o forte do filme, e tudo que se afasta desse mistério o enfraquece. Pedro Costa é mais terreno, social, político. Patiño é espiritual, soturno, enevoado. A lua vermelha desperta os fantasmas, que passam a vagar entre os fantasminhas. A lua vermelha reforça a sensação de um outro mundo, um planeta vermelho, antes, avermelhado como se embebido em vinho tinto. Filme forte, extremamente controlado (o que pode desagradar muita gente) e talentoso.

Mulher Oceano, de Djin Sganzerla

É a história de Hannah, mulher que não sabe exatamente o que quer, mas tem plena certeza do que não quer, o que é mais importante, como dizia Tarkovski. Djin Sganzerla parece ter o mesmo impasse como diretora, e por isso, em seu filme, o mais importante é a procura, a pesquisa, o percurso.

É sobretudo um filme sobre a inspiração. De uma escritora, de uma diretora e atriz. A inspiração como motor da vida e da arte, inspiração sem a qual não se vai muito longe.

Em dado momento, surge uma outra personagem, vivida pela mesma Djin, mas com cabelos ruivos. Seria a personagem do livro de Hannah? Uma espécie de projeção, no caso, de algumas obsessões da autora do livro?

Essa personagem, chamada Ana, recebe uma oferta tentadora de emprego em Campinas, mas não quer ficar longe do mar. O drama de Ana não é tão forte, e com isso o filme perde um pouco. No vai e vem de uma história para outra, cria-se uma desigualdade indesejável. Os momentos fortes de poesia, como a união das duas em uma só mulher, a mulher oceano do título, as andanças por Tóquio, as sessões de foto, as conversas e encontros no estrangeiro colocam o filme novamente para cima.

Siberia, de Abel Ferrara

Willem Dafoe, vê-se logo, é um ator essencial para Ferrara. Filipe Furtado sugere até uma co-autoria, no que acho acertado (embora o Filipe seja mais favorável ao filme que eu). Sua disposição para maluquices e seu rosto marcado caem bem nesse personagem atormentado por fantasmas do passado. A ambientação nas montanhas cheias de neve e a solidão do personagem nos remetem ao Essential Killing de Skolimowski (a comparação prejudica o filme de Ferrara, aliás), ainda mais porque Dafoe é expressivo de uma maneira parecida com Vincent Gallo. Siberia é mais forte quando adota uma câmera contemplativa da belíssima paisagem invernal do que quando adota a câmera do pesadelo, quando fantasmas assombram o protagonista. Por outro lado, Ferrara continua filmando maravilhosamente bem as cenas de sexo, no limite do soft porn, mas com o estilo marcante que ele aperfeiçoou em sua melhor fase, nos anos 1990. Não sou entusiasta da carreira do diretor após Go Go Tales (2007 – não o primeiro filme com Dafoe, mas o primeiro da atual parceria criativa, e também, a meu ver, o último grande Ferrara), mas devo reconhecer que Siberia tem alguns dos melhores momentos do cinema dele desde então.

Mosquito, de João Nuno Pinto

Passa-se em Moçambique, 1917, mas podia se passar nos anos 1960, durante as Guerras Coloniais encerradas com a gloriosa derrota de 25 de abril (derrota que se torna linda vitória da humanidade). Mosquito é uma espécie de Cartas da Guerra sem o texto de Lobo Antunes e o estilo de Ivo Ferreira, mas com uma câmera flutuante que revela uma procura realista de gosto duvidoso. O realista contemporâneo, da câmera que paira junto com os personagens em planos soltos e algumas vezes descuidados, por terem se tornado banais e porque não desejamos, afinal, observar as cenas dessa maneira trôpega. Há um ou outro plano interessante da paisagem, justamente quando a câmera é obrigada a parar de flutuar para buscar uma contemplação da natureza. Há também um encontro com uma tribo que proporciona alguns momentos belos no contato entre culturas diferentes (e apesar da câmera continuar demasiado solta). O encontro com um alemão perdido poderia ter desenlace digno, mas parece estar ali só para mostrar a crueldade da guerra e a apatia desse anti-herói quase insuportável.

Coronation e Vivos, de Ai Weiwei

Minha relação com o trabalho do artista chinês Ai Weiwei é parecida com minha relação com a arte contemporânea, salvo exceções. Posso admirar, por vezes com distância, mas posso também entender como arte enganosa, que tende a agradar mais pelo conceito do que pela forma (embora em seu caso essa impressão seja minoritária). O público contemporâneo, com seu acúmulo de estímulos, parece ter se acostumado ao maravilhamento fácil, o que pode provocar equívocos que a crítica (a de artes plásticas, principalmente, mas não só) não parece capaz de corrigir.

O lado enganoso de Ai Weiwei, a meu ver, se revela em Coronation, em que imagens gravadas são enviadas para ele, que arranja tudo de maneira meio frouxa, ao que me pareceu. Cenas de Wuhan vazia se alternam com depoimentos um tanto cansativos, às vezes apelativos, e cenas do cotidiano de quem está na linha de frente na luta contra o Covid-19. Pode ser instrutivo, pode nos alertar para um perigo que está longe de terminar (e aí o bom jornalismo, ainda que raro, nos alerta de maneira mais eficiente), mas não deixa de ser um pouco oportunista.

O lado bom do multiartista domina Vivos, documentário com algumas imagens belíssimas e uma construção mais feliz sobre estudantes que desapareceram no México de 2014, após terem sido abordados por policiais. É o tipo de coisa que acontece quando um país se torna dominado pelo crime organizado, algo que está muito perto de acontecer com o Brasil, se já não aconteceu. O diretor alterna imagens da natureza mexicana com depoimentos de alguns parentes dos desaparecidos, com cenas do cotidiano dessas pessoas como modo de nos colocar naquele mundo. É a tal de busca pelo real que tem dominado o cinema contemporâneo, sobretudo no documentário, desde Commoli. Aqui, felizmente, bem realizada e sempre instigante.

Dezesseis Primaveras, de Suzanne Lindon

A diretora realizou este longa com apenas 19 anos. Ela também atua, como a protagonista Suzanne, adolescente de 16 anos que se apaixona, e é correspondida, por um ator de 35. O amor, sabem eles, é impossível, ao menos por enquanto. E eles nunca chegam a consumá-lo. Há uma citação ao filmaço de Maurice Pialat, Aos Nossos Amores (1983), que anteriormente se chamava Suzanne. Um poster do filme, ainda com o nome de trabalho, adorna o quarto da menina apaixonada. As cenas com as meninas na escola ou em festas, lembram, ligeiramente, um dos melhores filmes adolescentes já feitos: Uma História de Amor Sueca (1970), primeiro longa de Roy Anderson. E Lindon está impressionante como uma menina três anos mais nova, perdida entre um mundo distante, o dos adultos, e a inadequação ao seu mundo adolescente. Não é um grande filme. Talvez nem seja bom, afinal. É, contudo, simpático, como todos os filmes que flagram com dignidade a vida de adolescentes.