
Sem mais delongas, vamos aos filmes…
City Hall, de Frederick Wiseman
Está logo no começo um dos trechos mais fortes do filme: há um casamento civil entre duas mulheres. A escrivã diz as palavras do ritual e no final as declara “hus ops… married” (“mari ops… casados”). A cena termina com a risada tímida de uma delas. Muitas coisas num simples e rápido momento: a necessidade de se habituar e se enquadrar aos novos tempos e novas configurações familiares, o costume de pronunciar “husband and wife” que provoca o pequeno lapso, a emoção das noivas e a beleza do ritual das alianças selando um amor que até pouco tempo não era permitido de ser mostrado às claras.
Esses momentos de beleza não anulam o fato de que Wiseman pede que o acompanhemos nessa jornada detalhista (e ainda assim insuficiente) pelas funções da prefeitura de uma grande cidade, no caso, Boston, cidade governada pelo Partido Democrata desde 1930. O prefeito Marty Walsh, seus assessores, seus compromissos com os diversos eventos, mesmo aqueles mais corriqueiros, são filmados por Wiseman com calma e atenção aos detalhes que farão a diferença no final. E é uma viagem de 4 horas e meia. Entramos num ônibus imaginário que não sai de Boston, o que já é mais do que a biblioteca da viagem parecida, a de Ex-Libris – New York Public Library (2017), já um filme que pedia entrega do espectador, com suas mais de três horas de duração.
E é o outro lado da viagem promovida em Monrovia, Indiana (2018), em que a cidade é menor, os espaços muito mais abertos que os de Boston e Nova York, o conservadorismo impera (já na primeira conversa tem Jesus para todos os lados, o casamento tradicional é realizado numa igreja cristã) e o ambiente é mais rural (além da viagem ser mais curta, com duas horas e vinte minutos. Monrovia, Indiana, por sinal, termina com um enterro, imagens impressionantes que comprovam a habilidade de Wiseman para iniciar e principalmente encerrar um filme, qualquer que seja o assunto.
Na ocasião de Ex-Libris, já houve quem dissesse que Wiseman tinha perdido o controle da duração de seus filmes, que ele já não teria mais condições de escolher a duração adequada ao que pretendia mostrar. Isso já tinha sido dito a respeito daquele que é talvez o seu trabalho mais bem acabado até hoje, National Gallery, com suas precisas três horas esmiuçando o grande museu londrino. É mais do que natural que essa questão ressurja agora com as quatro horas e meia de City Hall. Ela tende a ressurgir sempre que algum filme desafia a duração média esperada, algo entre 90 e 130 minutos. O que me parece estar em jogo, mais do que não saber o que cortar ou como cortar, é uma nova sensibilidade do público, habituado às horas de uma série que maratona nas plataformas de streaming. Wiseman parece apostar nesse tipo de imersão tornada mais comum nos últimos anos. Isso explica por que tanto tempo em reuniões como a dos veteranos de guerra ou em discussões internas. Ele parece apostar que o público, sobretudo o norte-americano, terá interesse no funcionamento de uma prefeitura, que o afeta diariamente nas coisas essenciais e, por tabela, afeta qualquer habitante de uma cidade grande o suficiente para ter essas atribuições todas em seu poder executivo. E com essa aposta, é possível dizer que qualquer duração seria justificável, o que não se aplicaria a um filme narrativo, documental ou ficcional.
Se há uma liberdade nessa escolha, há também uma limitação, porque tudo é tão esmiuçado que o filme ganha umas barrigas, que me parecem variáveis de espectador para espectador. Uns podem vibrar com as reuniões inclusivas, outros podem achá-las cansativas, um tanto idealizadas para a câmera, talvez, e principalmente distantes de nossa realidade brasileira onde parece imperar a lei do homem mais rico e branco. Uns podem curtir os momentos em que a neve enfeita a cidade, as frutas e legumes enfeitam as prateleiras de supermercados ou ainda a transitoriedade das sequências, da praça à polícia, da sede da prefeitura a um evento público. Outros podem encontrar em boa parte das conversas, e principalmente no comportamento da câmera durante elas, um convencionalismo que já ameaçava alguns filmes mais recentes de Wiseman, e que era habilmente contornado em National Gallery.
Frederick Wiseman é sábio e termina City Hall com uma meia hora muito forte, tanto pelas cerimônias quanto pela conversa sobre racismo. Isso nos deixa com uma impressão de que o filme, por se fechar muito bem, seja mais redondo, o que sua constituição de filme de acúmulo não torna possível. Com sua duração imponente e seus temas inclusivos, parece impor um julgamento superlativo ao espectador progressista. Como uma espécie de sonho de um mundo ideal que se torna possível na rica cidade da costa leste dos EUA.
O Despertar de Fanny Lye, de Thomas Clay
O filme de Thomas Clay começa com o tempo calmo dos filmes oitentistas e noventistas de Clint Eastwood, vira o Pasolini de dois terços da Trilogia da Vida (não se passa na Idade Média, mas vá lá), e logo se transforma no Kubrick de Laranja Mecânica (o poder do falo). O que vem depois? Nada que modifique o juízo de que é um filme o tempo todo numa corda bamba sem rede de proteção. Esse é seu maior valor. Basta? Vejamos.
A ideia do despertar de uma mulher é só uma parte de um despertar maior, de um ideal iluminista já atualizado para o século 20 (numa dessas liberdades históricas bem ao gosto do cinema contemporâneo) em meados do século 17, numa Inglaterra puritana e temente a Deus. A alegoria pode funcionar também de outro lado: um casal temente a Deus, que transa apenas para a procriação e come do que planta e caça, tem sua vida virada do avesso com a chegada de um anjo caído e sua companheira. O filme de Pasolini muda, então, e agora é Teorema. O tempo também muda. Não mais o de Clint Eastwood ultrajado por uma câmera que se movimenta como num filme de David Fincher, mas um tempo estranho, que lembra algo como O Reflexo do Mal (Philipe Ridley, 1990), por sinal, também um filme inglês.
Engraçado que nos primeiros 40, talvez 50 minutos, apesar de o tempo e algo na decupagem ter me remetido a Clint Eastwood (cujos filmes revi recentemente para um curso), achei que não precisaria invocar outros filmes ou cineastas para falar de O Despertar de Fanny Lye. Seu estilo era vibrante o suficiente para evitar as comparações.
A sedução de Fanny por Thomas é só um desvio para impressionar os atuais impressionáveis. O filme logo recupera seu curso. Mas que curso? Aquele em que não sabemos o que acontecerá em seguida. E a cada virada o filme nos surpreende e joga com nossas expectativas, com quem é mais malvado na história e quem tem sua redenção (o que de certo modo também o liga a Eastwood, como a Robert Aldrich). A sedução de Fanny já não era como pensávamos, ela vai mudando enquanto se desenrola. A vingança também não será como pensamos que seria conforme intuimos o momento de sua realização. O lado Rastros de Ódio, com o sinal da morte e a percepção subsequente de que eles não deviam ter deixado a casa, previsivelmente, poupa as mulheres. O que vem depois? O despertar. A lenda.
Clay anda bem próximo a uma narrativa e decupagem clássicas para subvertê-las com mais choque. Anda no paralelo para poder cortar a linha em momentos estratégicos, e com isso torna-se bem contemporâneo. Ajuda que seu talento seja mais sensível que o de outros enfant terribles do cinema narrativo atual, e que as atuações sejam todas impressionantes, mesmo para os altos padrões britânicos. Ainda bem, pois seu pendor para o exagero está sempre a ponto de lhe tirar o chão.
Isso Não é um Enterro, É uma Ressurreição, de Lemohang Jeremiah Mosese
Entendo o fascínio com este filme do Lesoto, a admiração por suas belas imagens e, principalmente o encantamento com a protagonista, um desses achados que carregam um filme nas costas. Mas em momento algum me senti genuinamente interessado no desenvolvimento desse drama ecológico de contornos sociais. Na maior parte do tempo me pareceu um apanhado de imagens belas sem uma espinha dorsal que as sustentam. Cada plano, cada cena, tem sua força isoladamente, e isso é difícil de negar. Há exceções: uma luz meio publicitária aqui, uma frouxidão ali. Em alguns momentos, o filme me lembrou Veredas (1978), a obra-prima de João César Monteiro, e também Uma Canção para Beko (Nizamettin Ariç, 1992) o primeiro longa-metragem curdo, visto em uma Mostra SP do início dos anos 1990 (ou estou sendo enganado pela memória, como também posso estar sendo levado pelo exotismo?).
Na cobertura do Olhar destaquei essa característica dos filmes atuais de lembrarem outros, no que parece uma condição, por vezes uma prisão. Esses parentescos não constituem um mal em si, ainda mais numa filmografia que pode nos prender pelo exotismo e pela humanismo. Aqui, o problema me pareceu mesmo a falta de unidade, que leva a essa falta de conexão entre o ver e o reter. Vi o filme com olhos gentis, no sentido de que o filme me levou a isso. Não é mau, é bem filmado, razoavelmente bem estruturado. Mas não consegui reter muito de suas imagens. Elas não ficaram comigo por muito tempo. Tampouco tenho vontade de rever.
Não Há Mal Algum, de Mohammad Rasoulof
Imaginemos o espectador ideal diante do filme. Ele não sabe nada do que se trata e começa a ver Não Há Mal Algum. Vê o cotidiano de uma família iraniana em Teerã. Pai, mãe e filha, entre o trabalho e a escola, entre a ajuda à avó debilitada e as compras do supermercado. O marido tinge os cabelos da esposa, ajuda a filha nas tarefas domésticas. A esposa recebe o salário do marido e se desentende com o caixa que nunca a reconhece. As ruas da cidade, o trânsito, os semáforos, os estacionamentos. Muitos documentários não conseguem atingir esse tipo de real, embora esteja em suas metas justamente a busca pelo real.
E, no entanto, há um drama forte em Não Há Mal Algum. O drama de matar pessoas. Após mais de meia hora vendo o cotidiano de um pai de família, vemos ele apertando o botão que executa, ao mesmo tempo, cinco ou seis condenados. Eles são enforcados, excrementos saem de seus corpos. Tudo seco, cruel. A banalidade da execução, entre um gole e outro, após um inocente lavar de frutas e legumes, surge como um golpe. Talvez esse anestesiamento do executor seja a única maneira de ficar incólume à crueldade de tirar a vida de outras pessoas. O episódio acaba e dá lugar a um outro, mais próximo do cinema de ação, em que um novato deve fazer sua primeira execução num tipo de presídio militar, mas planeja uma fuga com sua namorada. O momento “Bella Ciao” é um tanto tolo, mas o episódio tem alguma força. No terceiro episódio, outra bobeira. Após uma terrível descoberta, o protagonista (desse episódio em particular) sai correndo pela mata e mergulha seu rosto num riacho, com a câmera do lado de dentro do riacho a flagrar seu desespero. Novamente, é uma escolha tola da direção que não abala a qualidade de encenação e dramaturgia e a força do episódio, em consonância com quase todo o filme, no que diz respeito à dor de se matar alguém. Ele termina com uma despedida, e o quarto e último episódio começa com um reencontro no aeroporto. A tensão e os motivos para ela nos são fornecidos aos poucos e o episódio se torna um fechamento lógico para um filme episódico que consegue contornar muito bem o risco da irregularidade (quando um episódio fica muito mais fraco que os outros).
O mais forte de Não Há Mal Algum é sua decupagem, a divisão do filme em planos e cenas que começa a dar corpo ao material que será filmado, mesmo que por vezes a montagem corte celebrações ou encontros de modo um tanto desajeitado. A decupagem de Rasoulof privilegia a dramaturgia em detrimento do estilo, mas tem aquela arte que alguns grandes diretores do clássico segredaram, de saber a hora certa do corte e o plano certo para suceder um outro. Assim, quando o homem do quarto episódio tem uma crise de tosse, ele chama sua esposa, e o corte nos leva à jovem para a qual ele se exibia, e ela está com um olhar que pode significar reprovação (“eu estava entrando na onda desse velho?”) ou pena, ou mesmo preocupação pela saúde dele. Dito assim, não parece grande coisa. Mas é no tempo, nas escolhas de mise en scène e na montagem acertada, porque já bem determinada pela decupagem, que o filme encontra seu melhor caminho. Essa arte quase sempre parece perdida, mas de vez em quando aparece alguém, seja mais ligado ao clássico, seja voltado para o moderno, para resgatá-la: Marco Bellocchio, Celine Sciamma, Rita Azevedo Gomes. Há um forte lado melodramático, que surge no segundo episódio e vai aumentando até culminar no quarto, que tem uma revelação típica das novelas de Janete Clair e uma certa ligação com o segundo – com a reaparição de “Bella Ciao” em uma versão desfigurada, ou uma melodia semelhante à de “Bella Ciao” (nesse caso, seria proposital?). Isto pode afastar quem tem preconceito contra esse tipo de registro. Pena, pois perderão um belo filme decente (que seria ainda mais belo sem as tolices mencionadas).
Nariz Sangrando Bolsos Vazios, de Bill Ross IV e Turner Ross
Pode parecer uma ode ao saudosismo, já nos créditos que imitam os de filmes americanos dos anos 1970. Nariz Sangrando Bolsos Vazios é um lamento pelo que passou, por uma era que não volta mais, pelo fim de um espaço, um bar, que vai fechar. Há duas maneiras de se lamentar isso: guardando na memória com carinho e tristeza ou atacando os agentes de mudanças. No primeiro caso estão sonhadores, decadentes e melancólicos, no segundo, ressentidos e psicopatas. O primeiro senhor que entra no bar, cabelos longos e brancos presos com um rabo de cavalo, se orgulha de ter arruinado sua vida sóbrio e só depois ter se tornado alcoólatra. Esse é o clima do filme, dado logo nos dez primeiros minutos. Um encontro de simpáticos “has beens”, homens e mulheres que devem ter vivido um belo sonho e estragado muitas coisas pelo caminho. Mas estão ali, bebendo pela sobrevivência e celebrando a amizade e os encontros. Como o filme flagra o dia inteiro no bar, até o amanhecer do dia seguinte, os frequentadores vão ficando cada vez mais bêbados. E aí alguns ficam amargos, outros soturnos, outros melancólicos e alguns até mais alegres. Onde se encontrarão a partir de agora? Podem todos eleger um outro bar, mas nunca será a mesma coisa. Nem todos frequentarão esse novo bar. Aquele espaço, com aquelas pessoas específicas, jamais se repetirá. Os irmãos diretores tiveram a sensibilidade de permitir que todos os sentimentos possíveis aflorassem no filme. É um mosaico das reações humanas à finitude.
Ordem Moral, de Mário Barroso
É comum vermos excelentes diretores de fotografia naufragarem na realização de filmes. Se não naufragam, ficam bem aquém das possibilidades do material com que trabalham. Alguns realizadores, como Fassbinder ou Carlos Reichenbach, fazem muito bem o jogo duplo, talvez por terem formações mais de cineastas (e pensadores) do que de diretores de fotografia, embora realizem muito bem esta segunda função.
Mário Barroso tem história. Tornou-se o diretor de fotografia de alguns filmes de Manoel de Oliveira a partir de O Meu Caso (1986), e de João César Monteiro a partir de A Comédia de Deus (1995). Nesse ofício, é um dos maiores de Portugal, à altura de Acácio de Almeida ou Elso Roque. Na realização, arriscou-se em filmes densos, embora mais próximos do convencional, como Amor de Perdição, ele que já havia interpretado o escritor Camilo Castelo Branco em Francisca (Manoel de Oliveira, 1981). Mas o filme mostrou-se uma adaptação modesta de uma obra que já tinha sua versão definitiva para o cinema, a de Manoel de Olvieira, em 1979.
É com Ordem Moral, seu quarto longa, que ele tenta um novo salto rumo à realização de um cinema de prestígio. Mas ao tentar fugir da chamada “escola portuguesa”, da mise en scène mais rigorosa, frequentemente estática e mergulhada no claro-escuro e em enquadramentos pictóricos, quase litúrgicos, a tal escola que ele mesmo ajudou a desenvolver como diretor de fotografia, Barroso por vezes resvala no novelesco, na decupagem quase televisiva que se aproxima demais do academicismo.
Maria de Medeiros é uma força. Ela faz muito bem sua personagem, a herdeira do Diário de Notícias, Maria Adelaide Coelho da Cunha, que se apaixona pelo motorista de sua família e ao mesmo tempo se vinga dos adultérios de seu marido crápula, Alfredo da Cunha (que se acha dono do jornal e quer vendê-lo). Os atores não estão bem, principalmente o motorista amante. Não acreditamos que uma mulher forte dessas irá se apaixonar por ele. Num cinema que preza tanto a narrativa e a dramaturgia, essa é uma falha incontornável. Acompanhamos então o sofrimento de uma mulher por causa da ganância masculina sem ter uma forte obra cinematográfica em troca.
Sportin’ Life, de Abel Ferrara
“Um documentário sobre o ato de fazer um documentário”. É a explicação insuficiente, meio brincalhona, do próprio Ferrara, em cena deste ensaio fílmico sobre a parceria Ferrara-Dafoe, sobre a ida a festivais para promover o filme (no caso, Siberia, na última edição do Festival de Berlin, último evento cinematográfico pré-pandemia), sobre a criação e o ato de flagrar coisas ao acaso, sobre os encontros e cerimônias e sobre o cinema como uma arte coletiva, dentro da qual a contribuição dos atores e atrizes, dos diretores de fotografia e de outros envolvidos é tão grande quando a de Ferrara. Sim, é sobre tudo isso e algo mais. Em pouco mais de uma hora passamos por diversos mundos e sentimentos.
Ferrara é esperto e faz deste filme algo muito mais imprevisível e livre do que um making of para extras de blu-rays. De fato, como extra de blu-ray ele jamais serviria. Porque é um filme a parte, o melhor que o cineasta realizou desde Go Go Tales. As palavras de Dafoe dão uma boa dica da forma com que a parceria entre eles funciona, num nível de colaboração e cumplicidade que transcende a relação habitual entre diretor e ator. Ferrara também dá sua estocada em Donald Trump, colocando dentro de um calendário com o mês de fevereiro todas as asneiras ditas a respeito do coronavírus. A câmera pulsa como Ferrara, viva, por vezes trôpega, seja filmando uma conversa do diretor com a plateia, seja filmando um ensaio da banda que o acompanha, ou num Q&A com jornalistas. Essa pulsação vem bem a calhar para tornar o filme vivo, um documento da paixão de um cineasta.
Cenas de Siberia, Tommaso, Pasolini, 444, The Addiction, Go Go Tales. Por que essas escolhas, esses filmes? Por que Dafoe lê uma crítica negativa do jornal The Guardian para Siberia? A construção busca dar algum sentido ao caos do mundo e da criação e é uma força no filme. Tem também as queimações do filme dos outros: Mark Peranson anunciando o próprio texto sobre o Pinnocchio de Roberto Benigni no Village Voice, outras pessoas afetadas da área de cinema (o que talvez seja involuntário). Tem ainda as cenas do show de rock em que Ferrara canta e toca guitarra (mais do que queimação de filme, uma ideia do boa gente que topa tudo), reportagens com políticos e autoridades sanitárias lidando com a Covid 19, momentos de Nova York, Lisboa, Londres e sobretudo muitas cenas de festivais, dos microfones se amontoando, das câmeras que flagram todas as mesmas coisas, tudo isso de uma maneira meio improvisada, solta, em harmonia com o clima festivo e muitas vezes superficial dos eventos de cinema pelo mundo.
Pode parecer um filme meio picareta, no sentido de ser fácil, até meio óbvio de vez em quando, principalmente quando o assunto é a pandemia (e ainda assim me tocou mais que Coronation), embora em outras vezes pareça atirar para tudo quanto é lado (uma forma corajosa de se arriscar a jamais ter um foco, mas por sorte não deu errado). De todo modo, seria uma picaretagem mais talentosa que a dos últimos documentários de Ferrara. E com um momento mágico: quando Ferrara fala dos velhos truques, das chaves antigas que abrem novas portas e é gentilmente interrompido por uma interjeição de aprovação de Willem Dafoe, para então todos caírem na risada cúmplice. Tão lindo que dá vontade de rever Siberia. Mas melhor rever Sportin’ Life.
Tentehar – Arquitetura do Sensível, de Paloma Rocha e Luis Abramo
Um verdadeiro filme de horror que mostra o massacre indígena e a doença do bolsonarismo em estado de consolidação nos últimos meses de 2018. Muito acertada a fala da indígena: quem agora acusa o fascismo finalmente conheceu o Brasil, que para os índios sempre foi um país fascista. Um país construído pelo ódio ao diferente e pelo descaso contra quem pode menos. A conexão do ontem com o hoje é melhor feita em Antena da Raça, dos mesmos diretores. Aqui, a costura razoavelmente boa, mas ficamos nos perguntando até que ponto é antropologia ou exercício em masoquismo.
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observações:
– Nesta segunda parte, devo dizer que o Mostra Play continuou travando mais do que o desejável, mesmo diminuindo a qualidade de exibição para 720p (às vezes até menos). Acho essa uma parte importante que, convenhamos, não deu certo nesta mostra. Nada foi tão terrível como a exibição de Havel. Travava constantemente, sem dar sinal de que algum dia iria retornar. Até que eu reiniciasse a página, passasse pela vinheta novamente, o que na décima vez já se tornou insuportável, chegasse ao ponto onde parou e tivesse que reiniciar depois de uns vinte minutos por causa de nova travada. Tenho acompanhado festivais online desde o início da pandemia e sempre vi muitos filmes em streaming. Nunca passei por experiência tão desagradável quanto na tentativa de ver esse filme. No mais, reclamações de filmes travando não foram minoritárias, ainda que muitas pessoas, sabe-se lá por que (não é velocidade de internet, disso estou certo), viram sem problemas.
– Outro problema é a tal biblioteca para a imprensa. Já é ruim ter de escolher todos os 30 filmes reservados para jornalistas antes do início do evento. Se mudarmos de ideia ou atentarmos para algum outro que tenha escapado da peneira, temos de comprar. Mas tem um problema maior. Me programei para dar play em alguns filmes na segunda, dia 2, de manhã, pois a data de expiração deles estava nesse dia para 12h15. Mas deu 0h e eles expiraram, inexplicavelmente. Esse tipo de confusão deve ser evitado, pois destrói planejamentos e nos obriga a comprar o filme que estava programado para sair horas depois. Não comprei nenhum deles, porque pagar 6 reais para ver filme que trava não é um bom negócio. Mas ao menos um desses filmes, o turco 9,75, eu tinha bastante curiosidade de ver. Se esse problema for apenas com os jornalistas, menos mal. Mas não deixa de ser um problema facilmente solucionável, penso.