Godard e o entendimento dos filmes

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Poucos entendem que uma das questões principais do cinema de Godard é o desafio à capacidade de compreensão do espectador. Mais que desafio, é na verdade uma brincadeira com o medo que o espectador tem de não compreender o filme. Sempre foi assim, mas tornou-se mais evidente a partir do final dos anos 1960. Com o envelhecimento, Godard não arrefeceu. Pelo contrário: continua fazendo filmes para que os espectadores não entendam. A partir de Nossa Música, talvez antes, não me lembro, Godard elabora legendas em navajo english: de um monte de coisas que são ditas, a legenda nos informa simplesmente: “world, terrible” ou “Africa in pain”. Não são exemplos textuais, mas o sentido é esse, resumir as palavras traduzidas ao máximo; longos períodos se transformam em frases telegráficas, deixando apenas a essência do que é dito, e por vezes nem isso. São pistas. Ou mesmo pistas falsas.

No que isso prejudica nosso entendimento do filme se ao mesmo tempo muitas outras palavras aparecem, faladas ou escritas, poluindo a tela com os mais diversos tipos de fontes e contrariamente a algo que está em segundo ou terceiro plano, camadas que se debatem diante de nós?

Quem entende o francês melhor que eu já confessou também essa incapacidade de se entender tudo que é dito num filme de Godard, sobretudo os quatro últimos. O sentido do que é dito exige muito mais do que duas visões. E o sentido de tudo que é dito provavelmente sempre nos escapará.

Se não se entende que Godard é hiper racional e ao mesmo tempo fala diretamente aos sentidos, não se entende mesmo muito. Não se entende que as palavras e as imagens de seus filmes funcionam musicalmente, que sua mente funciona por colagens, trechos de coisas que ele lê, vê, ouve, e coloca nos filmes. É o ato de pegar um livro na estante, ler uma página e ir para outro canto ouvir Beethoven. Voltar à estante, pegar um outro livro e ler meia página, e sair para ver um trecho de Johnny Guitar. Falar em caleidoscópico parece meio simplório, mas é um pouco isso. Só que um caleidoscópio em que as imagens não se refletem; quando se multiplicam, elas se transformam totalmente.

E o que mais há para entender? Muitas coisas, e aos poucos vamos pegando algumas mais, até que, lá pela centésima revisão, o todo se revela. Ou se confunde totalmente. O que importa? É um dos maiores cineastas também porque o entendimento pleno de seus filmes não importa tanto. Algo de enigma deve permanecer para que a obra continue viva. Importa querermos captar algumas coisas, algo de sua verve crítica que absorvemos na incerteza.