Nós Por Cá Todos Bem

Consta que Nós Por Cá Todos Bem (1977) teve produção atribulada porque Fernando Lopes, com sua alma nobre, recusava-se a pegar subsídios integrais que pudessem impedir ou atrapalhar filmes de seus colegas. Com isso, ele sempre ficava na rebarba, à espera de novos subsídios, que eram sempre divididos, sobrando para ele menos que para outros. Assim já tinha acontecido com seu segundo longa, Uma Abelha na Chuva (1972), que já se noticiava em 1968 e não teve um quinhão do apoio da Gulbenkian (fundamental para a continuidade do Novo Cinema Português).

E por isso este seu terceiro longa, filmado em 16 mm na Várzea dos Amarelos, povoado rural da Beira Litoral, soa um tanto esquizofrênico. De certo modo, reflete as vontades de se fazer um filme etnográfico identificando o país rural que a revolução parece ter esquecido (“o 25 de abril ainda não chegou a este concelho”, dizem os escritos em um muro), de registrar o reencontro com a mãe e de, sobretudo, fazer cinema popular. Ecoa também a chegada de Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro, que daria inúmeros filhos, dos quais Nós Por Cá Todos Bem e Veredas, de João Cesar Monteiro, são os mais fortes.

Logo no início, vemos a matança do porco de três ângulos diferentes, o cachorro sendo chutado três vezes, e a senhora do campo observando a matança três vezes. O tipo de montagem de Uma Abelha na Chuva revela-se logo desajeitado para esse tipo de registro da vida rural portuguesa, e nos decepcionamos de ver o que parece ser um lado de procura gratuita pelo choque – que nem chega, de fato, para quem já viu filmes mais duros como O Sangue das Bestas, de Franju, ou Num Ano Com Treze Luas, de Fassbinder. Mas Lopes logo entrega a proposta, e se entrega em cena. Vemos seu corpo, seu rosto, ouvimos sua voz (ordenando o travelling, anunciando “corta”), a confirmar que é um filme muito pessoal.

Após um almoço em que Fernando Lopes é visto dando discretos sinais ao câmera, ele anuncia, diante de um espelho, que a parte documental acabou (mentira, irá voltar mais tarde) e daria lugar à ficção. Sai a camponesa, entra a atriz Zita Duarte. E em seguida vemos essa mesma atriz preparando comida numa cozinha, na companhia de outras duas mulheres, que com ela entoam uma deliciosa música pop. Imagino à altura, com os ânimos e humores todos muito mais interessados no cinema etnográfico e nos ecos da revolução, os críticos torcendo o nariz para essa deliciosa esquizofrenia do filme.

E é fácil entender as críticas que o filme sofreu (e mesmo quem gostou, como Eduardo Prado Coelho, Fernando Duarte, Lauro António, entre outros, aponta inúmeros problemas). A mistura de experimentação com gosto popular que explodiria em Crônica dos Bons Malandros já estava sendo elaborada aqui, ainda de maneira trôpega, mas com inúmeros momentos de poesia do mais alto quilate. É um filme que “se esconde e se recusa, porque se mostra, apenas, como uma testemunha, quieta e exterior, de um objecto sem sujeito. Uma fala amedrontada pelos fantasmas, quase deleitada com a imagem que sobre si fabricou e incapaz de se exceder ou de inventar”, escreveu José Camacho Costa à época da estreia comercial do filme (1978). Entendo a recusa a isso naquele momento. Não entenderia essa mesma recusa hoje. E prefiro as palavras de Eduardo Prado Coelho, no mesmo ano: “este filme parece deslizar sobre o impossível de outro”. Que outro? Coelho explica: “o projeto inicial de Fernando Lopes era muito mais amplo. Tratava-se de desenvolver ao longo de três filmes uma espécie de autobiografia simultaneamente íntima e colectiva, que acompanhasse o herói na sua deambulação do campo para a cidade, e denunciasse os mecanismos pelos quais a cidade (se) faz esquecer (do) campo – de que o 25 de abril, e as suas políticas, são exemplo desesperante e patético”.

Nas duas outras sequências ficcionais de Nós Por Cá Todos Bem, vemos uma leitura bem ousada – porque sensual, quase secreta – das memórias da Santa Maria Goretti, e a descoberta do sexo, num prostíbulo, por um jovem adolescente (o próprio Lopes?). Incrível que essas sequências estejam juntas com todo o teor documental que forma os 80 minutos de duração e fazem com que o filme pareça muito maior em tamanho, ao mesmo tempo que passa muito rápido na tela. Lopes parte de seu mundo e faz caber nele todo um outro mundo, do cinema, do campo, de Portugal, do 25 de abril e da religiosidade de um povo.

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