Ainda Fernando Lopes
Assim como é difícil amarmos quem não admiramos, nossa admiração muitas vezes está ligada a algo que vemos ou gostariamos de ver em nós. Quando a admiração se confunde com a identificação, temos uma forte sintonia, nos mesmos moldes das que Jairo Ferreira gostava de enumerar em escritos ou conversas informais (certa vez, ele me confessou uma forte sintonia com Shohei Imamura, mas nem precisava confessar).
Algumas sintonias são mesmo inexplicáveis porque são imensas, mágicas. Uma das mais fortes que senti foi com Luís Buñuel. A descoberta de sua obra na passagem dos anos 80 para os 90 foi a verdadeira confirmação da minha paixão por cinema, talvez por eu ter identificado em suas obsessões, e também em seu livro, O Último Suspiro, um irmão de alma, alguém com quase os mesmos gostos (dispenso ratos e armas de fogo, e não sou tão fã de dry martini), as mesmas manias. Ainda no início dos anos 90 passei a admirar Manoel de Oliveira, porque era alguém que eu nunca poderia ter sido, mesmo se tivesse nascido no Porto em 1908: um homem distante demais de mim na essência, e ao mesmo tempo com uma força que me chamava, ainda me chama, e instigava, contra a qual eu nunca quis lutar. Outro tipo de sintonia, talvez, mas com a mesma força. As duas surgiram no meu início de juventude, no período de acúmulo de sabedoria (quase sempre mal empregada) que se iniciava com o ingresso na universidade.
Passados muitos anos, a descoberta de uma revista e a revisão de um filme, percebo um novo irmão de alma, um outro português. A revista é a Cinéfilo (1973-1974), o filme, Uma Abelha na Chuva (1972), o irmão é Fernando Lopes, diretor da revista e do filme. A descoberta e a revisão foram reforçadas pelo conhecimento de outras duas obras de Lopes: Nós Por Cá Todos Bem (1978) e Crônica dos Bons Malandros (1984).
Conhecia dois filmes de Fernando Lopes antes de vir para Portugal, os dois mais óbvios, ainda que lamentavelmente pouco conhecidos no Brasil: Belarmino (1964) e Uma Abelha na Chuva. Apesar de tê-los em alta conta, foi só me familiarizando com sua personalidade conciliadora, sua ampla carreira profissional, sua poética, a ousadia de misturar o vulgar com o erudito e de se arriscar na fronteira entre o cinema popular e o cinema mais intelectualizado, que pude perceber o quanto esse diretor tinha muito em comum comigo, ou melhor, com o que eu gostaria de ser.
A começar por uma ausência completa de exibicionismo (céus, como odeio exibicionismos), mas também por uma certa doçura no comportamento que eu sei que tenho, mas que penso ser raramente conhecido e percebido, mesmo pelos meus amigos mais próximos (talvez porque meu signo, escorpião, tende a esconder coisas que podem me tornar frágeis – mas esse seria um assunto para Luc Moullet, se eu fosse minimamente digno de ser assunto para um texto dele).
Essa vontade febril que Lopes tinha de se atirar às ideias mais estapafúrdias, aquelas que, na dúvida, costumam ser abandonadas por artistas mais cautelosos, tem muito a ver com a maneira como entendo a experiência criativa. Ele abraça suas contradições e não arreda pé, criando verdadeiros filmes esquizofrênicos (dos quais Nós Por Cá Todos Bem e Crônica dos Bons Malandros são exemplos máximos) e até mesmo um filme noir situado numa cidade solar e clara (também à noite) como Lisboa.
Ainda não vi seus últimos filmes. Dizem que são mais fracos. Suas últimas entrevistas, contudo, revelam uma lucidez e uma generosidade difíceis de encontrar.
Nós Por Cá Todos Bem
Consta que Nós Por Cá Todos Bem (1977) teve produção atribulada porque Fernando Lopes, com sua alma nobre, recusava-se a pegar subsídios integrais que pudessem impedir ou atrapalhar filmes de seus colegas. Com isso, ele sempre ficava na rebarba, à espera de novos subsídios, que eram sempre divididos, sobrando para ele menos que para outros. Assim já tinha acontecido com seu segundo longa, Uma Abelha na Chuva (1972), que já se noticiava em 1968 e não teve um quinhão do apoio da Gulbenkian (fundamental para a continuidade do Novo Cinema Português).
E por isso este seu terceiro longa, filmado em 16 mm na Várzea dos Amarelos, povoado rural da Beira Litoral, soa um tanto esquizofrênico. De certo modo, reflete as vontades de se fazer um filme etnográfico identificando o país rural que a revolução parece ter esquecido (“o 25 de abril ainda não chegou a este concelho”, dizem os escritos em um muro), de registrar o reencontro com a mãe e de, sobretudo, fazer cinema popular. Ecoa também a chegada de Trás-os-Montes (1976), de António Reis e Margarida Cordeiro, que daria inúmeros filhos, dos quais Nós Por Cá Todos Bem e Veredas, de João Cesar Monteiro, são os mais fortes.
Logo no início, vemos a matança do porco de três ângulos diferentes, o cachorro sendo chutado três vezes, e a senhora do campo observando a matança três vezes. O tipo de montagem de Uma Abelha na Chuva revela-se logo desajeitado para esse tipo de registro da vida rural portuguesa, e nos decepcionamos de ver o que parece ser um lado de procura gratuita pelo choque – que nem chega, de fato, para quem já viu filmes mais duros como O Sangue das Bestas, de Franju, ou Num Ano Com Treze Luas, de Fassbinder. Mas Lopes logo entrega a proposta, e se entrega em cena. Vemos seu corpo, seu rosto, ouvimos sua voz (ordenando o travelling, anunciando “corta”), a confirmar que é um filme muito pessoal.
Após um almoço em que Fernando Lopes é visto dando discretos sinais ao câmera, ele anuncia, diante de um espelho, que a parte documental acabou (mentira, irá voltar mais tarde) e daria lugar à ficção. Sai a camponesa, entra a atriz Zita Duarte. E em seguida vemos essa mesma atriz preparando comida numa cozinha, na companhia de outras duas mulheres, que com ela entoam uma deliciosa música pop. Imagino à altura, com os ânimos e humores todos muito mais interessados no cinema etnográfico e nos ecos da revolução, os críticos torcendo o nariz para essa deliciosa esquizofrenia do filme.
E é fácil entender as críticas que o filme sofreu (e mesmo quem gostou, como Eduardo Prado Coelho, Fernando Duarte, Lauro António, entre outros, aponta inúmeros problemas). A mistura de experimentação com gosto popular que explodiria em Crônica dos Bons Malandros já estava sendo elaborada aqui, ainda de maneira trôpega, mas com inúmeros momentos de poesia do mais alto quilate. É um filme que “se esconde e se recusa, porque se mostra, apenas, como uma testemunha, quieta e exterior, de um objecto sem sujeito. Uma fala amedrontada pelos fantasmas, quase deleitada com a imagem que sobre si fabricou e incapaz de se exceder ou de inventar”, escreveu José Camacho Costa à época da estreia comercial do filme (1978). Entendo a recusa a isso naquele momento. Não entenderia essa mesma recusa hoje. E prefiro as palavras de Eduardo Prado Coelho, no mesmo ano: “este filme parece deslizar sobre o impossível de outro”. Que outro? Coelho explica: “o projeto inicial de Fernando Lopes era muito mais amplo. Tratava-se de desenvolver ao longo de três filmes uma espécie de autobiografia simultaneamente íntima e colectiva, que acompanhasse o herói na sua deambulação do campo para a cidade, e denunciasse os mecanismos pelos quais a cidade (se) faz esquecer (do) campo – de que o 25 de abril, e as suas políticas, são exemplo desesperante e patético”.
Nas duas outras sequências ficcionais de Nós Por Cá Todos Bem, vemos uma leitura bem ousada – porque sensual, quase secreta – das memórias da Santa Maria Goretti, e a descoberta do sexo, num prostíbulo, por um jovem adolescente (o próprio Lopes?). Incrível que essas sequências estejam juntas com todo o teor documental que forma os 80 minutos de duração e fazem com que o filme pareça muito maior em tamanho, ao mesmo tempo que passa muito rápido na tela. Lopes parte de seu mundo e faz caber nele todo um outro mundo, do cinema, do campo, de Portugal, do 25 de abril e da religiosidade de um povo.
O Tempo e o Modo
Uma parte importante de minha pesquisa para o doutorado consiste em entender um pouco melhor o contexto em que João Cesar Monteiro praticou a crítica de cinema à sua maneira mordaz, antes de se tornar o diretor de filmes celebrados como Silvestre ou Recordações da Casa Amarela. Para isso, vasculhei, entre inúmeras outras publicações, cada edição que a Cinemateca tinha da revista O Tempo e o Modo, uma publicação dedicada ao universo das letras, mas que falava de política, história e outras artes (incluindo aí cinema e música). Importantes críticos escreviam nela. Entre outros, podemos encontrar João Bénard da Costa, Antonio Pedro Vasconcelos, Lauro Antonio e nosso João Cesar Monteiro, abreviado J.C.M. no quadro de cotações que ilustra este post.
Não era comum ter esse quadro. Se não me falha a memória, essa foi a única edição em que o encontrei. Mas o que me espanta é a maneira como Barba Ruiva, filme de Akira Kurosawa que considero excepcional, foi recebido pelos seis críticos que o viram na época: todos deram a cotação mínima (como na Cahiers du Cinéma, as cotações iam de 0 a 4 estrelas). Claro que é possível argumentar que eles viram mal o filme. Mas os seis, incluindo aí o Alberto Seixas Santos, outro que depois se tornou um bom diretor? São críticos e historiadores importantes, que normalmente escreviam coisas profundas, demonstrando incrível entendimento do que é cinema. Não só, sobre a vida também. Aprendi e ainda aprendo muito com todos eles.
Creio que naquela circunstância, 1966, havia um clima ainda desfavorável a Kurosawa, sobretudo se pensarmos o que os jovens turcos influenciaram os críticos portugueses da época. Esse clima deve ter influenciado o olhar, levando a esse equívoco. Desconfio até que alguns deles mudariam de opinião depois que Kurosawa foi revisto e melhor entendido no ocidente, a partir dos anos 1970 e nos anos 80, principalmente.
Nota-se que o coração dos críticos portugueses, àquela altura, pertencia à turma da Nouvelle Vague, já que as melhores notas vão para Muriel, obra-prima desconcertante de Alain Resnais, e Alphaville, um Godard nem sempre muito amado, mas obviamente muito talentoso.
No mais, é curiosa a boa recepção ao brasileiro O Menino de Engenho, de Walter Lima Jr, assim como é decepcionante ver como Vidas Secas foi mal entendido na época aqui em Portugal. E são escandalosas as duas bolas pretas para Gertrud, obra-prima de Carl Th.Dreyer. De fato, não dar quatro estrelas para esse filme já é um escândalo. E os únicos que deram a cotação máxima são os críticos portugueses que mais gosto de ler: João Bénard da Costa e João Cesar Monteiro. Este último tem como uma de suas mais brilhantes críticas justamente uma sobre o último filme de Dreyer, que considerava o mais erótico já feito.
OBS – Integrantes do quadro:
Antonio Pedro Vasconcelos, Alberto Seixas Santos, Duarte Nuno Simões, João Bénard da Costa, João Cesar Monteiro, José Maria Torre do Valle, João Paes, Nuno de Bragança.
A Raiz do Coração
A liberdade com a qual Paulo Rocha trabalha em A Raiz do Coração (2000) é invejável. Não importa se um carro passa com rotação aceleradíssima quando não deveria passar, pois todo o som do filme respira uma invenção totalmente liberta dos padrões que se ensina nas escolas.
Um político (Luis Miguel Cintra) que parece derivado do Paulo Autran de Terra em Transe e aparece vestido de Santo Antonio em pregações pela limpeza de Lisboa, uma hermafrodita que tem o poder de virar homem ou mulher conforme abandona as perucas, uma cafetina de poderes políticos que não podem ser desprezados, um policial em crise de identidade, que se envolve com a cafetina e sua filha hermafrodita Silvia (Joana Bárcia), um grupo de queers marginalizados e resistentes ao fascismo do dia a dia. Esse é o caldeirão de loucuras e prazeres que o filme nos mostra, totalmente fora das amarras narrativas costumeiras. A direção de fotografia é de Elso Roque, que trabalho com Manoel de Oliveira, Lauro Antonio, e em outros filmes de Rocha.
Há um momento que de tão belo chega a doer. Logo no início do filme, o dilema de Silvia é apresentado em uma bela canção, entoada por ela enquanto a câmera foca um barquinho navegando no chafariz. Uma cena noturna, melancolicamente portuguesa, tocante e que nos prepara para entender o filme de uma forma igualmente mais livre.
Essa poesia só se alcança com liberdade. Não só a liberdade do diretor que pode filmar o que quer sem pressão externa. Essa é importante, mas nem sei se é o caso. Refiro-me à liberdade de não seguir quaisquer padrões e não dar a mínima para os signos do contemporâneo. Isso só um mestre consegue. Como Paulo Rocha, dos maiores diretores portugueses, alto representante do cinema moderno do país.
Crônica dos Bons Malandros
Uma das maiores vantagens em se ter a consciência do que se pode fazer ou não em cinema, ou seja, o saber conseguir a adequação necessária entre todos os meios de filmagens e o tipo de filme que se vai fazer, é que a invenção, uma vez acertada a forma, surge com maior facilidade. Claro que disso depende um diretor que tenha talento. Mas geralmente essa consciência, por ser rara, aparece em diretores talentosos, nunca em aventureiros. Quase tudo é planejamento, já dizia o mandamento do bom autor (se é que podemos acreditar em mandamentos).
Fernando Lopes planejou sua adaptação do livro de Mário Zambuja, Crônica dos Bons Malandros, como um filme de assalto farsesco, com alguma metalinguagem e uma liberdade que não estamos acostumados a ver no dia a dia cinematográfico, e com isso conseguiu criar algo incrivelmente novo a partir de uma mistura inusitada e ensandecida de Eternos Desconhecidos (Mario Monicelli), A Morte de um Burocrata (Tomas Gutierrez Alea) e Prenom: Carmen (Godard).
A invenção surge inesperada (mesmo; é daquele tipo de filme que faz com que seja impossível prever como será o próximo plano, a próxima cena): o narrador que aparece visualmente só na segunda metade do filme; a repetição no começo, com a explicação do narrador; os números musicais deliciosamente toscos; a maneira como ele pontua a narrativa com uma série de vinhetas afilhadas da videoarte, culminando com a sequência de assalto mais sui-generis da história do cinema, uma espécie de “Tron encontra a ópera”. Tem ainda a consequência do assalto, com a perseguição policial: uma aula de como contornar as dificuldades de se fazer filme de gênero fora de Hollywood e sem um grande orçamento.
Aquele desfile acrobático de carros de polícia inserido no clímax é das coisas mais geniais que vi em cinema ultimamente. Rimos em dois níveis: das acrobacias em si e do sentimento de que estamos vendo uma demência completa e assumida no que seria inicialmente do sub-gênero filme de assalto.
A doideira é tanta que alguns críticos ou cinéfilos, ou gente de cinema no geral têm (ou tiveram) certo pudor de colocar este filme nas alturas, embora, nas suas palavras, tal colocação possa ser percebida. Vejam a nota do crítico e cineasta Joaquim Leitão: “É um filme do qual não gosto todo, mas do qual gosto muito – que consegue fazer-me rir e comover-me no mesmo plano”. De certo modo, isso bate com Carlos Reichenbach, que amava filmes tortuosos, filmes que claramente tinham partes menos sucedidas, sendo ainda assim magníficos. Quase um guilty pleasure à sua época, talvez Crônica dos Bons Malandros seja melhor apreciado hoje, quando podemos ver que esse tipo de liberdade raros cineastas têm.
Portugal anos 70: Crime de Amor e Lerpar
O nome é genérico, mas trata-se de uma raridade do cinema português: Crime de Amor (1972), de Rafael Moreno Alba, é uma co-produção com a Espanha graças à união do ator e produtor Américo Coimbra com o produtor Victor Zapata (de Tristana). É um melodrama gótico montado segundo o modernismo cinematográfico sessentista (Resnais, Godard, Antonioni) e com uma dupla de atores de fazer corar alguns amigos noveleiros.
Américo Coimbra, galã português com trabalhos principalmente na TV e nos anos 60, interpreta o poderoso empresário que trabalha muito e viaja com frequência, deixando sua esposa, a estrela catalã Núria Espert, sozinha na maior parte do tempo. Para driblar a solidão e a carência afetiva, ela se envolve com pintores boêmios de Lisboa, e cede às investidas de um playboy chegado ao nomadismo, mas que normalmente ancora seu barco em Faro, capital do Algarve.
Apesar de ausente, o marido desconfia das longas saídas da esposa, e contrata um detetive particular para seguí-la. Esse detetive é meio desajeitado. Corre pelas ladeiras de Lisboa, deixa cair seus aparatos e causa riso na pequena plateia da sala 3 do São Jorge. Mas flagra o romance extra-conjugal. Começa assim a porção El do filme de Alba. Como na obra-prima de Buñuel, o ciúme do marido é doentio. Aqui, leva igualmente a extremos.
O filme também é doente, tortuoso, como gostava Carlão Reichenbach. Crime de Amor parece um catálogo de escolas cinematográficas: barroco, maneirista, clássico, moderno, romântico, gótico, folhetim e, sim, horror psicológico, encontram-se de forma febril neste curioso exemplar do cinema moderno português.
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De poucos anos depois é Lerpar, longa de estreia de Luís Couto sobre um jovem, José, que está claramente desiludido com o que vê à sua volta, e tenta driblar essa desilusão com garotas. Uma forma de esquecer o mal ao redor é não se apegar a nada. Principalmente porque todas as garotas que passam por ele parecem ter alguma conexão com a riqueza. Mesmo a empregada está cercada de valores de posse dos patrões e parece fazer o jogo deles na tentativa de ascender financeiramente. Os sonhos de José, nos quais ele aparece de cabelo esvoaçante, sem camisa e num fundo onírico, me lembraram os momentos mais delirantes do belo longa argentino Nazareno Cruz y el Lobo, de Leonardo Favio, curiosamente, também de 1975. Mas o que o filme de Favio tem de sobra – imaginação – no filme de Couto aparece em doses muito econômicas. Couto foi crítico e publicitário antes da realização de Lerpar. De certo modo, a segunda faceta predomina neste longa.
São Jorge
Leio que São Jorge, de Marco Martins, foi o filme português escolhido para tentar uma indicação na lista de filmes estrangeiros do Oscar. Escolha coerente, já que a lista de escolhidos para essa categoria tem sido deprimente há muitos anos, com um ou outro acerto em meio a dezenas de bombas. (um amigo costumava acompanhar esses indicados, e ultimamente confessou que era mesmo uma roubada)
Vi São Jorge logo que cheguei em Lisboa, no Nimas, numa retrospectiva do circuito comercial português no ano até então (uma dessas programações Mandrake de verão, que servem para novos habitantes, como eu, tirar parte do atraso). O outro filme que vi de Marco Martins, até onde lembro, não é grande coisa, mas também não é de se jogar fora. Mas o que Alice tem de instigante, São Jorge tem de óbvio. A começar pela câmera, decalcada de O Filho de Saul, que por sua vez é decalcada dos Dardenne, que por sua vez…
Depois tem a escuridão. Alguém aqui me falou que os filmes lisbonenses atuais tendem a ser escuros, que está se pintando uma Lisboa sombria, sem muita esperança. O simbolismo pode funcionar, uma vez que a gentrificação está em pleno vapor e os miseráveis continuam a ser empurrados, até sei lá onde e até sei lá quando. Mas parece já desgastado. Essa câmera trôpega, movendo-se na escuridão e enquadrando de perto a nuca do protagonista (o cúmulo do contemporâneo, a estética da nuca), talvez não impressione mais.
Vale, obviamente, pela interpretação de Nuno Lopes, um dos maiores atores portugueses da atualidade, embora sua interpretação seja parcialmente sabotada pela câmera, e vale para um brasileiro como eu ver que a vida em Lisboa (e em Portugal) não é nada fácil e que as mesmas injustiças existem aqui aos montes (o dinheiro, afinal, manda em tudo). Curiosamente, a amada de Nuno no filme é uma brasileira, que pensa seriamente em se mandar. Talvez tenha desistido após ver que o Brasil chegou bem antes ao inferno.