Já sabemos da demonização que a grande mídia fez com o MST. Já sabemos o que o governo atual, empenhado em defender os cidadãos de bem que provavelmente arderão no inferno (se este existir) está fazendo com a luta legítima por reforma agrária. Já sabemos do imenso valor desses trabalhadores, ou pelo menos da maioria deles, gente de força e dignidade muito além dos crápulas do dinheiro que comandam o país. Mesmo assim, é com tristeza que saímos da projeção de Chão, de Camila Freitas. Isso porque o filme é hábil na costura de suas cenas, seguindo num crescendo até a hora do embate com a mídia. E nos lembramos da nossa atual situação. Mas a tristeza logo dá lugar à esperança, quando vemos alguns desses trabalhadores rurais na sessão, empolgados por ver sua luta representada na tela, sensibilizados pela acolhida da maior parte do público, mesmo numa cidade 80% Bolso como Curitiba (basta conversar com as pessoas na rua para identificar que muitos desses já se arrependeram). Saímos também, ou melhor, talvez seja a hora de abandonar a suspeita primeira pessoa do plural e passar para o singular, e dizer que saí com a sensação de que até mesmo esse tipo de filme militante o cineasta brasileiro aprendeu a fazer, depois de anos de certa acomodação com a mania da adesão automática de parte dos críticos e frequentadores de festivais.
Volto ao chão (sem trocadilho) no brevíssimo entre-sessões, mas disparo novamente ao espaço das incertezas estéticas já nos primeiros minutos do filme seguinte, o intenso e altamente impactante Ó, Sol (1967), de Med Hondo, cineasta da Mauritânia que assina este que é o segundo longa realizado no continente africano (o primeiro é La Noire de, de Ousmane Sembene). Filme desesperado e desesperante, me confessou Luiz Zanin na saída. Imperdível, disseram alguns outros amigos que tinham visto na sessão anterior, anteontem. Sim, é tudo isso mesmo. Um grito de horror contra o racismo manifestado em diversas camadas da sociedade, muitas vezes de maneira inconsciente, o que é ainda mais perigoso. Um filme que, sendo de 1967, época de filmes que ficam datados facilmente, por vezes maravilhosamente datados, Ó, Sol permanece um arroubo de ousadia estética e invenção na montagem e no uso do som, algo que até hoje pode causar calafrios em estudantes mais comportados de cinema, e uma ponta de inveja em quem trilha esse caminho difícil da criação (críticos inclusos, obviamente). Queria eu, queria qualquer pessoa com apetite para as artes, criar desse jeito, com tanta alternância de registros e tons, sem quebrar em momento algum a unidade crítica que o filme exibe em cada plano, e sem abrir mão de uma postura sempre aguda e contrária ao conformismo. Não há trégua. O longa de Med Hondo é tão forte que em pleno 2019 consegue nos despertar (ou pelo menos permitir que nos policiemos melhor) de certas armadilhas que caímos, nós, brancos, quando entramos na questão racial. Problemas ele têm, obviamente, frutos da dificuldade que era filmar naquele momento (e ainda é) e de uma certa vontade de falar de muitas coisas e de falar sempre com raiva. Quando o filme ameaça entrar num ponto de acomodação com sua própria verve combativa, há uma nova mudança de tom ou de registro para nos tirar o chão (vocês julgam se há ou não trocadilho).
Depois disso, era ou ir para o hotel e pensar na vida e no mundo em 2019 (e ver quanto evoluímos e quanto regredimos), ou ver algum outro filme na esperança de que seja escapista mesmo sem querer sê-lo. Foi o caso de Enquanto Estamos Aqui, de Clarissa Campolina e Luiz Pretti. Nem precisava falar das influências de Jonas Mekas e Chantal Akerman. Elas são evidentes. Em alguns momentos o longa parece querer continuar de onde News From Home, de Akerman, parou. Pretti citou ainda outra influência, Jem Cohen. E no debate, que não acompanhei, deve ter falado de outras. Claro que ver um filme logo após Ó Sol, sem nem tempo para respirar entre um e outro, é bem prejudicial ao segundo filme. Mas o lado escapista que vem sobretudo quando eles atingem uma certa abstração na câmera que filma muito de perto ou movendo-se muito rapidamente, dá um certo descanso, e o filme é um registro de vários exílios que nunca agride, embora pudesse ser menos derivativo.