Foram apenas quatro dias (dos sete que envolvem o festival em sua parte nuclear), mas deu para perceber o quanto o Fest Aruanda é especial. Há algo de mágico na cena nordestina. Ela é apaixonada, vibrante e contagiosa. Difícil ficar imune ao cinema feito na região, e em especial na Paraíba, que me parece ser a bola da vez. Mesmo quando os filmes são cheios de problemas, há algo neles que nos conquista. Claro, vistos em festival esses filmes tendem a ser vítimas de uma impressão equivocada. Mas essa impressão pode ser também negativa. Noves fora, posso confiar, por ora, na minha impressão inicial.
Escrevo aqui sobre um festival de filmes brasileiros, mas não necessariamente nordestinos. Ou seja, pode haver filmes de todo o Brasil. No caso, quero dizer que algo dessa paixão e da sede cultural que se respira (e muito bem) no nordeste passa para todo o festival. Fica um clima de comunhão, propiciado também pela vontade de reagir ao crime cultural do novo governo federal e pela consciência de que a cultura é muito importante, economicamente, seja para um país, uma região, um estado ou uma cidade. Essa consciência meio que comanda as reações aos filmes e a cada palavra dita pelos apresentadores, representantes dos filmes selecionados ou homenageados. E contagia até mesmo um observador distante.
Depois tem esses encontros inesperados que fazem toda a diferença e me fazem querer continuar acompanhando festivais. Lúcio Vilar, diretor artístico do festival, disse que fez uma disciplina comigo na USP, em 2011, eu iniciava o mestrado, ele, o doutorado. Depois, um jovem cineasta, Fábio Rogério, sentou ao meu lado no ônibus da volta para o hotel e disse que estava numa palestra sobre crítica que ministrei na UFSCar, em São Carlos, por volta de 2013, 2014, algo assim. Isso me lembra que eu esqueci de pedir o óbvio: o link do curta que ele dirigiu, um dos que perdi.
Passando para os filmes, pude finalmente ver O Barato de Iacanga, longa de Thiago Mattar sobre o Festival de Águas Claras, evento com quatro edições na pequena Iacanga, interior de São Paulo. Problema evidente do filme: a falta de imagens da primeira edição. Passamos para a segunda, a terceira e até mesmo a quarta, mas ficamos sem ver grandes imagens em movimento da edição inaugural, de 1975. As mais documentadas são a segunda (de 1981) e a terceira, de 1983. Elas são as responsáveis pelo festival ter saído de um certo underground (de boas bandas de rock progressivo ou hard rock) para uma ideia mais ampla de MPB, com participações de Alceu Valença, Luiz Gonzaga e João Gilberto, entre muitos outros. Tornou-se um festival mais plural, e isso o filme mostra bem. Como mostra, também, a maneira como o evento envolveu toda a comunidade de Iacanga. O alívio cômico das duas testemunhas das edições é bem-vindo, assim como as breves entrevistas com comerciantes locais. Mas aí surge também um problema, que afeta o filme somente em alguns momentos: a síndrome de Huguinho, Zezinho e Luisinho, que consiste em fazer com que a fala de um entrevistado continue imediatamente a fala de outro. Por sorte, essa mania do documentário televisivo acontece em poucos momentos. No geral, o filme é delicioso de se ver, principalmente para quem gosta de música brasileira.
No dia anterior, consegui acompanhar a sessão Sob o Céu Nordestino, com dois curtas e um longa. Giocondo Dias – Ilustre Clandestino, de Vladimir Carvalho, é decepcionante, no sentido de ser quadrado, extremamente convencional em seus 90 minutos, como uma longa reportagem televisiva. Claro que contém informações importantes. Para mim, uma delas é que Aloysio Nunes, que fez a parte mais destacada de sua carreira no PMDB de Orestes Quércia, ainda sente grande afeto por José Dirceu, companheiro da época em que ambos estavam no PCB. Muda bastante o espectro político, mas a admiração e a amizade continua, o que diz, de algum modo, tanto de Aloysio quanto de Dirceu.
Os dois curtas dessa sessão são Costureiras, de Mailsa Passos, Rita Ribes e Virgínia de O.Silva, e A Ética das Hienas, de Rodolfo de Barros. O primeiro está no velho esquema de entrevistas e e se não traz invenção alguma, também não desrespeita um nível mínimo de qualidade. Trata-se então de um curta correto, nada mais que isso. A Ética das Hienas também é correto, principalmente no relato das incorreções típicas do Brasil. Um acerto trabalhista para poupar o pessoal da grana. O destaque vai para os atores: Tavinho Teixeira, Marcélia Cartaxo, Suzy Lopes e a nova promessa (ou já mais que isso) Daniel Porpino (protagonista do bom Desvio, longa paraibano da competitiva).
Finalmente, antes de seguir para o aeroporto de Jampa para voltar a Sampa, consegui ver De Longe, Ninguém Vê o Presidente, de Rená Tardin, que havia perdido na sessão de segunda. É um curta poderoso, que usa o áudio do discurso de Lula antes de sua prisão com imagens das montadoras de São Bernardo do Campo. Percebe-se a substituição do homem pela máquina, um dos motores de uma crise difícil de ser solucionada. Mostra também o carisma político de Lula (goste-se ou não dele), e a força de suas palavras e de seu lado comunicativo. O plano mais emblemático de ABC da Greve é inserido perto do final, e cai bem ali, foi uma inserção bem pensada, justa. Afinal, foi ali, em São Bernardo do Campo, discursando para os trabalhadores, que sua carreira de liderança popular se consolidou. As imagens fortes do curta, compostas (e juntadas) com cuidado, abriram uma sessão (a que comentei no último texto, que se encerra apropriadamente com o longa Partida), com quatro curtas e um longa, das mais inspiradas que pude ver em qualquer festival.