A dobradinha Ruiz-Bressane garantiu um dia inesquecível no 8º Olhar de Cinema. De Bressane, a revisão de Memórias de um Estrangulador de Loiras (1970) e a primeira visão de Sedução da Carne (2018). De Ruiz, a primeira vez que vi o raro O Teto da Baleia (1982) e também o média As Divisões da Natureza (1979).
É curioso ver no mesmo dia um Bressane de 1970 e outro de 2018. O tempo passa e o diretor continua irredutível na prática de um cinema que não se rende a modismos ou fórmulas para festivais. É certo que fazer isso agora que seu nome já tem uma grife muito forte é mais fácil. No entanto, ele parece ousar ainda mais atualmente, desde as imagens da primeira parte de seu penúltimo filme (há um outro, co-dirigido por seu montador Rodrigo Lima), algo como um Godfrey Reggio dos trópicos, imagens que procuram levar as pesquisas visuais de Garoto para um outro lado, até a típica conversa bressaniana entre Mariana Lima e um papagaio mudo, com as habituais brincadeiras visuais de perspectiva, foco e nitidez.
Mais curioso ainda é chegar à conclusão que Memórias de um Estrangulador de Loiras, o mais raro e cultuado de seus filmes de exílio, é uma espécie de pré-Elefante, o de Alan Clarke, com uma série de estrangulamentos de loiras (as mesmas atrizes, aliás, são estranguladas diversas vezes) por Guará, o assassino de Londres. Na minha memória, havia menos estrangulamentos e mais deambulações de Guará pela cidade. Estava enganado. O bebê do início pode sugerir um trauma. Guará estaria se vingando pela sexualização de sua primeira infância. Mas Bressane é chegado a pistas falsas, então convém não dar por certo o que é duvidoso, como sempre é em seu cinema.
Do mesmo modo, é fácil entender Sedução da Carne como um filme que advoga contra a matança de animais. Mas o que entendi é que fica explicitado o prazer culpado de quem adora comer carne, mesmo sabendo do sofrimento dos animais. As imagens de Le Sang des Bêtes, o assustador filme de Georges Franju de 1948 (que o filme informa equivocadamente ser de 1938), sugerem essa terrível culpa. Ainda não se fez, ou pelo menos eu não vi, imagens tão eloquentes a favor de uma vida sem ingestão de carne animal do que esse filme de Franju, cineasta sempre subestimado. Mariana Lima, que interpreta uma intelectual que enviuvou há três anos, é perseguida por um pedaço de carne crua, até que termina possuída por vários pedaços de carne crua (elas se multiplicam como gremlins), seu corpo se contorce de prazer.
Mudando para o chileno Ruiz, se o francês As Divisões da Natureza impressiona pelas distorções radicais do castelo que ele pretende retratar, as imagens do holandês O Teto da Baleia teimam em ficar na cabeça mesmo após duas outras sessões históricas do festival (é o mal de não poder ver um filme e tirar o dia de folga, sem ver mais nada). Causa-me estranhamento o fato de esse filme não ser tão badalado quanto As Três Coroas do Marinheiro, A Vocação Suspensa ou Hipótese do Quadro Roubado, ou mesmo que não seja tão elogiado quanto O Território ou A Cidade dos Piratas, todos dessa fase mágica que vai de 1978 a 1983. No auge do maneirismo, Ruiz aprofunda algumas pesquisas de Fassbinder com texturas (há um plano que me lembrou muito de Nora Helmer, telefilme que o diretor alemão dirigiu em 1974) e provoca verdadeiras desconstruções da imagem, criando caleidoscópios e névoas misteriosas numa Patagônia exuberante. O humor é único, a maneira de enquadrar os atores parece um segredo que poucos conhecem, as atuações, por sinal, são algo entre o hipnotizante do Herzog mais radical, o humorístico blasé de um Tanner e o delirante de um Schroeter. Ainda assim, o cinema feito por Ruiz nesse período, com estilhaços por toda sua carreira posterior (vejam, por exemplo, Combate de um Amor Sonhado), parece não ter filiação. É uma obra alienígena, ainda, com a qual temos de lidar com parâmetros ainda não muito conhecidos.