Propriedade

Quando Bacurau estreou, não foram poucos os que acusaram o filme de ser americanizado, de fazer apologia da violência, um cinema domado pelo imperialismo, e outras bobagens. Como se o cinema brasileiro não pudesse ter outras aparências que não a do cinema autoral e não pudesse ter pretensões de thriller. Pensava que as mesmas reclamações, ou reclamações parecidas, iriam surgir, se é que não tenham surgido fora do meu radar, a respeito deste Propriedade, segundo longa de Daniel Bandeira. O filme entra agora na Netflix, plataforma que tem se empenhado, a passos de tartaruga, em ficar menos ruim. Como reagirá a ele o espectador comum do domingo, o filme entre o futebol e a pizza?

Teresa (Malu Galli) está traumatizada porque foi mantida refém de um homem até que a polícia conseguisse matar esse homem com um tiro na cabeça. Essa é a imagem amadora que introduz o filme, no enquadramento de um celular na vertical. Dá calafrios de imaginar que essa será a forma do filme. Felizmente, Daniel Bandeira está muito consciente da forma que seu filme deve ter, e extrai o melhor possível de situações difíceis envolvendo clausura e luta de classes.

Teresa vai com o marido para a fazenda da família. Enquanto isso, os funcionários da fazenda ficam sabendo que perderão seus empregos, porque a fazenda vai virar hotel. Eles buscam maneiras de arrombar o cofre do patrão para recuperar seus documentos e algum dinheiro. São surpreendidos pela chegada do patrão com sua esposa. Agridem o patrão e a esposa foge para o carro recentemente blindado pelo marido. Ela, no entanto, não se lembra do comando de voz que faz o carro funcionar, e fica presa dentro dele, ao alcance dos furiosos. Cruel ironia com a paranoia da classe média diante da violência de criminosos e desesperados.

O melhor do filme é que ninguém é inocente. Os explorados são sacanas como os exploradores. Até mesmo as duas senhoras, que aparentemente se apresentam como mais compreensivas, revelam-se monstros vingadores (nos planos gerais, é curioso ver como elas se juntam aos outros revoltosos). Os instrumentos de segurança instalados para proteger a esposa do proprietário impedem sua fuga e fazem-na de novo uma refém. A tecnologia a sabota, mas ela precisa confiar que a blindagem do carro seja realmente eficaz, pois correr para o mato não parece ser uma boa saída.

Brasil, terra do tiro e das posses. Há algo de Buñuel nessa insurreição. É cada um por si e quem tem sapato não sobra. A crueldade dos empregados revoltados é tamanha que muitos cinéfilos progressistas devem reclamar da falta de consciência de classe demonstrada pelo diretor. A tensão é incessante, o horror se dá pelo crescendo do ódio e da violência entre patroa e empregados. Vai ser interessante ver o espectador da Netflix vendo um filme como esse, em que prevalece a ideia do “quem tiver de sapato não sobra”.

Um filme do mal, sem concessões ou lacrações, como há muito o cinema brasileiro precisava. Temos, finalmente, um cinema da crueldade.