
1971 foi um ano especial para Clint Eastwood. Com Don Siegel rodou dois de seus maiores filmes como ator, Dirty Harry e O Estranho que Nós Amamos. E ainda estreou na direção, com Perversa Paixão (Play Misty For Me), que havia oferecido para Siegel, mas acabou sendo convencido a dirigir (com Siegel numa participação lúdica como dono de um bar em Carmel). Sua produtora, a Malpaso, por meio de um arranjo com a Universal, possibilitava independência e um certo poder, o que lhe garantiu, desde cedo, a possibilidade de estabelecer uma carreira muito consciente e inteligentemente estruturada, inicialmente sobre a ideia de herança de seus mestres (Leone e Siegel, mas também Ford, Walsh, Hawks, Wilder, Wellman, Huston, Capra, Kurosawa), para logo depois, sem abandonar a ideia anterior, adotar uma linha de resposta de um filme ao seu antecessor.
Perversa Paixão introduz a persona de Eastwood como uma espécie de David Cardoso em Hollywood. O mulherengo está prestes a tomar jeito, por causa de uma mulher pela qual se apaixonou, quando não resiste à sedução de uma fã, até descobrir que essa fã é obsessiva e psicopata. É como se fosse um castigo pela vida cafajeste, mas também serve para que o diretor, desde o início de sua carreira, bombardeie a construção de sua persona cinematográfica (homem machista, cowboy que mata a sangue frio, policial quase-fascista, lutador de rua). Tudo isso, mas sempre um questionador dessa formação pela adoção de uma sensibilidade artística (amante de jazz, pintura, livros) ou de algum trauma passado que precisa ser superado. Oportunidade também para que Eastwood discuta algumas exigências de Hollywood, inicialmente na esquerdista Nova Hollywood, da qual ele não fez parte, mas à qual respondia de alguma maneira, depois no reaganite entertainment (anos 80) ou no reinado da Hollywood democrata dos anos 1990 em diante.
Falando em Nova Hollywood, se há filmes de Eastwood que se aproximam mais do espírito daquele momento de rebeldia estética e temática, são os três primeiros que dirigiu. Em Perversa Paixão, o momento em que ele descobre que a nova moradora da casa de sua namorada é justamente a psicopata (um poema de Edgar Allan Poe é usado brilhantemente como pista), é resolvido com uma sublime montagem paralela entre ele em disparada por uma estrada paradisíaca (a paisagem de Carmel) e a psicopata rasgando o quadro com seu rosto. O rasgo de uma persona cinematográfica é explicitamente tematizado já em sua estreia na direção, e continuará por uma carreira que ainda teria rasgos ainda mais impressionantes (As Pontes de Madison e Menina de Ouro figurando entre os maiores), ao lado de alguns personagens que deixariam a construção dessa persona ainda mais ambígua e provocadora (O Cavaleiro Solitário, O Destemido Senhor da Guerra, Rookie, Crime Verdadeiro).
Aproveito para lembrar do vídeo que gravei (e o velho amigo Alexandre Martins Xavier editou brilhantemente), sobre três longas musicais de Clint Eastwood. Vejam e se inscrevam no canal. Vai ter mais, numa relação que pretende ser saudável com este blog: