Começando Gostoso

seteanos

A cobertura da 6ª Mostra de Cinema de Gostoso será mais curta que a do ano passado. Como estava em Paraty, cheguei mais ou menos na metade do festival, tendo visto os dois primeiros filmes da competitiva em outras ocasiões, e conferindo os dois últimos com a plateia de Gostoso.

Plateia que, neste ano, parece mais ruidosa. Podemos dizer até que ela boicotou Vermelha, de Getúlio Ribeiro, terceiro longa da Mostra Competitiva. Enquanto o filme se desenrolava na tela com a bela projeção 2K, o tablado de madeira virou uma passarela. Não passava um minuto sem que um grupo de pessoas andasse do início ao fim olhando para os lados, nem sempre à procura de lugar porque as andanças continuaram depois que alguns barulhentos foram embora, mas para ver quem estava ali. As pessoas conversavam aos berros, como se estivessem numa mesa de bar. Os dois casais atrás de mim mereciam um prêmio pela grosseria e falta de respeito. Eram mais velhos. Mas os jovens também aprontaram. No meio do filme sentou um casal jovem quase do meu lado. O desmiolado ficava fazendo barulho com uma sacola de plástico e comendo coisas fedidas. Depois passou a ver coisas no celular e a comentar o que via com a namorada ou amiga. Interesse zero pelo que se passava na tela. Respeito zero por quem tinha interesse.

Penso que essa grosseria tem um motivo. Acostumadas com a fluidez narrativa de Bacurau, exibido na noite anterior com público recorde, um filme que aprendeu direitinho a arte de um cinema de gênero bem feito, essas pessoas foram para ver Bacurau 2, mas encontraram o quase hermético Vermelha, só sossegando, um pouco, nas cenas de briga. E penso isso porque esse tipo de coisas existia no ano passado, mas não o tempo todo, e não em tão altos decibéis. Bacurau deve ter aberto os portais do inferno do pior tipo de espectador que todas as cidades têm. O espectador que está interessado em mais coisas externas do que no filme. Outro sinal de que isso pode ter acontecido foi a intensa movimentação de espectadores chegando após o média Sete Anos em Maio. Foi algo inédito, para mim, em Gostoso. Pobre Vermelha sofreu com isso.

E o longa não é ruim. É desconjuntado, demora para encontrar um foco, dificilmente pode ser considerado um filme bem sucedido. Mas há coisas nele que podemos reter. A opção do diretor Getúlio Ribeiro por uma estrutura documental revela-se insuficiente, e por vezes até atrapalha o filme de encontrar seu foco. Quando esse foco é encontrado, ou mesmo enquanto está aparecendo, surgem até cenas documentais belas, como a entrevista com a moça que raramente usa cabelo solto (mas a vemos bastante de cabelo solto depois disso). O auge é quando um credor bate à porta do protagonista, o tal de Gaúcho, com quatro capangas. Um vizinho vê tudo e aparece para ajudar com uma enorme vara. Não chegam a se bater por muito pouco. Cria-se um impasse, resolvido com a promessa de quitar a dívida em três dias. O que acontece depois é tão bizarro que não posso contar. Mas é parte do que responde pelo que o filme tem de melhor, sobretudo um diálogo bizarríssimo entre o credor e o protagonista Gaúcho. Isso, claro, se a festa que se fez em torno do filme permitiu que eu entendesse direito o que se passava ali. Nessas horas, links são fundamentais.

Falta falar sobre os filmes que vi em outros festivais ou dispositivos, mas fica para um post futuro. Por enquanto quero falar um pouco sobre Sete Anos em Maio, que confirma o amadurecimento de Affonso Uchoa, demonstrado em Arábia (codirigido por João Dumans, montador de Sete Anos em Maio). É bom ver que o filme de Uchoa, com seus 42 minutos plenamente justificáveis – é o tempo que o filme precisava ter, de acordo com seu diretor – anda circulando pelos festivais, geralmente avessos a essa duração intermediária (por culpa dos festivais, obviamente).

Na linhagem que surge com Murnau e Ford, passa por Straub-Huillet e desemboca em Pedro Costa, Uchoa se insere em algum ponto, sem que se atribua a ele a necessidade de estar em pé de igualdade com esses gigantes, o que seria injusto, e principalmente sem que a realidade brasileira, tão presente em seu cinema desde A Vizinhança do Tigre, deixe de ser a condutora da narrativa, ou uma de suas principais condutoras. Não se trata de derivação, como costumamos ver quando não se atinge uma assinatura própria, mas de filiação, como a que existe em praticamente qualquer autor.

No caso, não se trata apenas de falar da corporação policial como instrumento de poder que pode ser corrompido com muita facilidade e virar fascismo, como tem acontecido bastante. A questão para Uchoa está nas relações de poder, na corrupção da alma que é a posse de um revólver ou qualquer outra arma de fogo, ou vestir uma farda, ou responder a uma hierarquia militar muito rígida. A busca pelo poder, por si só, gera monstros. E não importa se esse poder seja executivo, judiciário ou legislativo, se for de alcance nacional ou numa rua de um bairro. O poder do guardinha da esquina, do homem que se vale do “você sabe com quem está falando”, ou daqueles que se acham no direito de fazer ameaças, é a podridão maior de nossos tempos, a falência moral e humana de um país violento como o Brasil. Claro que essa busca pelo poder é um mal necessário, mesmo dentro de uma anarquia, penso eu, por contraditório que seja. Mas é necessário estarmos sempre críticos e ela, evitando tanto o fanatismo quanto a crucificação.

No mais, Sete Anos em Maio mostra que tem alguma debilidade mental muito grave quem costuma dizer que “bandido bom é bandido morto”. Porque é muito óbvio que não dá para saber quem é o bandido na maior parte das vezes. E melhor que essa dúvida se instale em um filme habilmente enquadrado, fotografado, decupado e montado. Mais importante ainda, que tudo esteja em comunhão, sem que um elemento chame a atenção. Falta falar de muita coisa, mas por enquanto destaco a divisão em três terços – o repulsivo, a confissão (maior e melhor parte), o teste-confronto – que fortalece a estrutura narrativa e mostra uma engrenagem fascista por meio de suas vítimas, mas mostra também a necessidade de lutar contra essa engrenagem (parece óbvio, mas estamos à beira de um apocalipse).

E vou indo, vai o texto sem revisar mesmo, porque aqui internet boa tem sido mais rara que saci-pererê.