Olhar de Cinema 2020 – Parte 1

Los Conductos

*** Introdução e textos sobre Los Conductos, Canto dos Ossos, A Metamorfose dos Pássaros, Quem Tem Medo de Ideologia? Pajeú, O Indio Cor de Rosa e Crônica do Espaço.

Filmes que começam bem e terminam mal ou relativamente decepcionantes foram uma constante nesta edição pandêmica do Olhar de Cinema. A Metamorfose dos Pássaros, Longa Noite, Quem Tem Medo de Ideologia?, Crônica do Espaço, Victoria, Los Lobos são todos filmes que têm em suas primeiras metades ou em seus primeiros terços, um número maior de imagens ou sequências fortes do que no restante de suas metragens. Talvez as estratégias estéticas tenham fòlego curto, talvez o entusiasmo de juventude não tenha sustentado um longa em toda a sua duração. Pode ser cansaço no visionamento? Inicialmente, desconfiei disso também. Nem sempre estamos com a concentração em alta e nem sempre vemos os filmes nas melhores condições possíveis, em sala de cinema ou em casa, havendo sempre a possibilidade de que algo nos tire o foco (um celular acedo na poltrona da frente, um telefone que toca em casa, etc). Mas em alguns casos, quando possível, eu retomava o filme do início e verificava que o problema persistia, ao menos de acordo com minha visão. Algumas imagens iniciais continuavam fortes, e o desenvolvimento delas nem tanto. Se minha visão estiver equivocada, só revisões futuras podem dizer. Imagino, contudo, que esses filmes tenham mesmo algo de muito animador em seus primeiros minutos e uma incapacidade de manter o nível por toda a duração.

Uma outra questão é a derivação compulsiva dos filmes contemporâneos. Todos lembram insistentemente outros filmes ou cineastas. Não acho necessariamente um problema porque o cinema, apesar de ser uma arte jovem, já chegou muito perto de um esgotamento de inovações, dependendo agora da tecnologia para camuflar essa limitação. E as outras artes também comportam derivações, tendo em algumas de suas obras mais marcantes procedimentos já vistos anteriormente. Cineastas hoje costumam ou precisam trabalhar com o já feito, já realizado, o maneirismo do maneirismo, o que pode causar uma anulação das referências ou até uma impressão de academicismo. Essa é na verdade uma questão antiga, e quando se pensa que nada mais pode ser feito de novidade surge algo que não é exatamente novo, mas tem um certo frescor (os cinemas de Eugène Green, Celine Sciamma, Pedro Costa, Tsai Ming Liang, Adirley Queiroz, Jia Zhangke, Rita Azevedo Gomes). A alusão se tornou a principal moeda do cinema contemporâneo, quer o cinéfilo capte ou não as fontes de onde se bebeu. Isso não quer dizer que se deva rejeitar tudo que faz alusão a outros filmes, ou obras construídas com base em alusões. Seria rejeitar o cinema contemporâneo quase que por inteiro. Mas deve-se julgar também a maneira como os filmes respondem às suas afiliações. Como já disse alhures, todo artista é herdeiro de alguém, assumidamente ou não. O que se faz com essa herança é responsabilidade de cada um.

Por fim, vale notar como quase todos os filmes brasileiros que vi no Olhar tentam entender a situação e descobrir uma resistência ao governo atual, o governo da destruição dos pilares que sustentam uma nação: educação, cultura e saúde, sem os quais a economia vai dar em água em algum momento. Talvez esse governo, no fim, precipite a destruição também do capitalismo, e o que vai restar é algo muito próximo do que vimos em distopias cinematográficas de diversos cantos do mundo. O cinema brasileiro dará conta disso? Os documentários, sobretudo, estão todos mergulhados nas questões de sobrevivência a essa destruição, e a maioria deles, mesmo quando o que está em questão são investigações do passado, vai direto às vítimas principais, os sem teto, os sem terra, os indígenas, aqueles que estão nas periferias, buscando formas de resistência ou mesmo de sobrevivência ao caos.

Seguem agora alguns comentários, por vezes breves, por vezes prolixos ou mais aprofundados, dependendo do que se espera deles, sobre os filmes que vi no Olhar 2020, com a exceção de dois, Agora e Los Lobos, com os quais não me entusiasmei muito e sobre os quais falhei em não anotar nada após os visionamentos, tendo agora ficado bastante distantes de mim.

OS LONGAS DO OLHAR

Los Conductos, de Camilo Restrepo

Em algum lugar perdido entre os cineastas da pós-Nuberu Bagu (herdeiros menos talentosos de Nagisa Oshima) e diretores modernos latino americanos como Leonardo Favio se encontra Camilo Restrepo e seu Los Conductos. O filme começa com um crime. O zoom à Oshima nos aproxima da mancha de sangue. Mas a escuridão predomina. Antes até do crime, uma imagem acompanha a geometria exposta nos créditos. Parede azul com recorte de luz na diagonal.

É um filme de linhas, como os japoneses dos anos 1970, e um filme de decupagem razoavelmente inventiva, como os da melhor fase de Favio (de Crónica de un Niño Solo a Nazareno Cruz y el Lobo, 1965-1975). Se não atinge o mesmo nível dos oshiminhas, muito menos o de Favio, é porque Restrepo não sabe muito bem como preencher os 70 minutos de um filme, então coloca uns planos supérfluos como os do protagonista batendo cabeça ao som eletrônico e duplicado pela montagem em efeito espelhado ou alguns outros planos meio tolos – não porque gratuitos, mas por enfraquecerem o padrão estético do filme. Penso por exemplo no protagonista, chamado Pinky, andando de moto com os braços para o alto. Talvez seja uma questão de estreia em longas, ainda mais um que tenha sua porção narrativa. Talvez seja falta de autocrítica na hora de selecionar as inúmeras ideias de primeiro longa. Nessas horas, parece que estamos vendo algo de Xavier Dolan, dentro desse mar de referências que se tornou o cinema contemporâneo, para o bem e para o mal.

Por outro lado, algumas imagens ficam conosco muito além do fim, como aquela da fanfarra em Medelin (não a da sequência final, mas sua antecipação), intercalada pelo olhar intenso de Pinky para a câmera; as cenas na estamparia, trabalho de fachada para esconder transações desonestas; os planos no enorme túnel. Ou ainda os buracos entre tijolos que servem para guardar celular ou maço de cigarros. Imagens que não vemos com muita frequência no cinema.

Ou seja, nos primeiros 20 minutos já temos, alternadamente, o pior e o melhor do filme. De certa maneira, prosseguimos nessa alternância de erros e acertos, que reflete o percurso do protagonista, até o fim, com vantagem para os acertos (pelo plano final, tudo indica que também para o protagonista).

Canto dos Ossos, de Jorge Polo e Petrus de Bairros

Com filmes de horror, o mais comum é termos duas reações opostas. Quem tem preconceito torce o nariz para qualquer coisa que identifique como vagabundo, clichê ou apelativo. Quem ama o gênero incondicionalmente tende a relevar ou até ignorar eventuais defeitos de estrutura, mise en scène ou coerência, privilegiando a quantidade de violência, sustos ou a constância de certos lugares-comuns do horror. O primeiro grupo é mais prejudicial, pois tem uma série de condicionamentos e parece não querer vencê-los, arvorando-se numa soberba que não tem nada a ver com entendimento de cinema. O segundo não ofende e não prejudica ninguém, a não ser quando se sente o detentor da verdade referente à valoração de alguma obra cheia de problemas.

Quem espera do cinema apenas atuações profissionais e diálogos sub-literários terá dificuldade de embarcar nesta criativa história de vampirismo chamada Canto dos Ossos. Filme noturno, cheio de imagens e fugas misteriosas, que deixa evidente, desde os primeiros planos, a precariedade de produção e o amadorismo do elenco. Espectadores brasileiros sacam mais ainda esse amadorismo por causa das falas, mas deviam sacar também o que está entre elas, como os sorrisos envolventes trocados entre as amigas após a notícia do encontro amoroso de uma delas ou uma caminhada noturna numa área rural belamente filmada logo no início, ou as ações dos vampiros, sobretudo a primeira, marcada por bela fusão de imagens.

Canto dos Ossos escancara o baixo orçamento sem vergonha alguma, e propõe a partir daí alguns dos mais belos planos do cinema brasileiro recente, coisa de quem aprendeu bem o beabá da mise en scène. Há momentos mal cuidados também, e para além da precariedade. Algumas escolhas menos felizes da posição da câmera, por exemplo. Para um filme tão hábil nesse aspecto, esses momentos gritam, embora sejam desculpáveis pela pouca experiência dos diretores e pelo que eles se arriscam na ordenação e construção das cenas. O texto também tem momentos adolescentes, diálogos tolos e offs com voz gutural que parecem introdução de um mau disco de death metal (fãs incondicionais de horror geralmente afirmam que não existe mau disco de death metal). Tudo isso é fácil de ser descontado pelo que o filme tem de acertos, sobretudo na estrutura, no ritmo e em alguns planos bem construídos.

A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos

Por vezes, a vontade de fazer poesia vem antes da vontade de expressar um sentimento ou uma inquietação. Isso não acontece no cinema de Rita Azevedo Gomes, por exemplo, mas parece acontecer em alguns momentos de A Metamorfose dos Pássaros, longa de estreia de Catarina Vasconcelos e um dos filmes mais celebrados nesta edição do Olhar de Cinema.

Tem certamente um parentesco entre esta estreia e o lado mais ensaístico do cinema de Rita. Mas tem também algo de João Nicolau e também de João Salaviza, ainda que em doses menores. É quando seu filme ameaça sucumbir às armadilhas da poesia a priori que a diretora dribla parcialmente o risco e se entrega ao ensaístico e ao autobiográfico. Mas é também quando seu filme abandona o risco e caminha em terreno mais seguro que perde parte de sua força. A irregularidade do lado mais poético continha imagens fortes. A segurança da parte mais abertamente autobiográfica, incluindo a repetição dos melhores truques de estilo da primeira (que agora já não causam mais surpresa) não nos oferece muito.

No geral, é um filme a que vemos com interesse, mas sem muita empolgação (de modo que me surpreendo com os elogios que vem recebendo).

Quem Tem Medo de Ideologia?, de Marwa Arsanios

Quando separei para ver este filme, imaginei, pelo nome, que iria aguentar uns dez minutos de panfleto e acabaria desistindo. Felizmente estava bem enganado, já que a Marwa Arsanios mostra suas garras logo no início, falando para a câmera com o som fora de sincro (ou foi falha na exibição?) no meio de uma região desértica e fria. Depois ela está no carro, e entram as entrevistas. A primeira parte é mais forte, conta com depoimentos interessantes, que funcionam porque a diretora pensa em fazer cinema em vez de panfleto e é bem-sucedida no intento. Na segunda parte, o filme torna-se irregular. Mas a diretora contorna as irregularidades de maneira digna.

P.S. Um dos curadores, Aaron Cutler, a quem agradeço pela informação, me informou que foi opção da diretora mesmo a falta de sincronia no início.

Pajeú, de Pedro Diógenes

O diretor japonês Naoki Nagao criou, em Musashino – Torres de Alta Tensão (1997), uma história curiosa de um menino que, após admirar uma torre com o número 75, resolve seguir uma linha imaginária que liga essa torre à número 1. Desse modo ele inicia e realiza um percurso curioso pela região onde passa as férias, em Tóquio, ampliando suas fronteiras e conhecendo melhor o seu mundo.

Algo parecido acontece em Pajeú, de Pedro Diógenes, mas aqui a ampliação de mundo se dá pelo despertar político e social. A impressão é de que o diretor queria entender o percurso do riacho que corta Fortaleza e suas mudanças, a maneira como a natureza foi soterrada pelo capitalismo, história de nossas cidades, e com isso enredou uma ficção em que uma professora tem visões relacionadas ao riacho. O documentário investigativo, o drama sobre a solidão e o horror se juntam de modo inusitado, propiciando uma série de planos fortes, mas também alguns que falham em não ser tão interessantes como a premissa sugere. Individualmente, muitos deles perdem força, enquanto a mistura de registros devolve interesse a eles. Por exemplo, após uma crise motivada por uma visão, a professora se põe a entrevistar pessoas que trabalham perto do rio, ou estudam a urbanização da cidade, ou controlam a saúde urbana. O choque beneficia o filme, embora alguns planos falhem em alcançar algo mais contundente, exceto por um ou outro momento: a dança no karaoke é certamente um deles. Num filme criado por contrapontos, alguns planos de impacto o fortaleceriam.

Diógenes fazia parte da produtora Alumbramento. É uma constante nos membros desse grupo, mesmo separados e mesmo com as diferenças entre eles cada vez mais gritantes, uma inquetação com a categorização dos gêneros cinematográficos e com as fórmulas de cinema autoral. O problema é que muitas vezes as estratégias para escapar das fórmulas identificadas por eles desaguam em outras fórmulas, que talvez eles não saibam muito bem como contornar. Pajeú tem essa irregularidade que é característica da produção de boa parte do que interessa no cinema brasileiro contemporâneo. Essa desigualdade não é uma força, como querem alguns. É uma limitação. Mas até agora essa limitação não impediu que os filmes fossem, no mínimo, reflexos interessantes de procuras formais, quando não instigantes em suas construções e nos procedimentos usados para enfrentar os obstáculos. Ao se concentrar nos subterrâneos da cidade e na ligação entre ela e uma de suas moradoras, Pajeú consegue dar um passo além dessa limitação.

O Indio Cor de Rosa Contra a Fera Invisível: A Peleja de Noel Nutels, de Tiago Carvalho

Imagens e áudios de arquivo, numa coleção impressionantemente rearranjada pelo diretor. Um resgate da luta pela preservação dos índios resulta em um filme marcado pela memória e pela dor. Em um momento, entram cenas de, entre outros filmes, O Descobrimento do Brasil, o longa de Humberto Mauro cuja ambição o relegou a um peso menor em sua carreira. Injusto? Provavelmente. Mas é curioso como as imagens casam bem com as outras de arquivo. Um fluxo de documentos visuais de impacto certeiro, com grande mérito de Tiago Carvalho na ordenação do material, e de Noel Nutels nas filmagens originais. Mérito também na conjunção óbvia e cruel entre ontem e hoje.

Crônica do Espaço, de Akshay Indikar

Com momentos belíssimos e momentos que lembram filmes de arte engessados dos anos 1990, como O Cheiro do Papaia Verde, o indiano Crônica do Espaço vai desafiando nosso olhar com imagens poéticas, algumas forçosamente poéticas, e uma trama que envolve crianças à procura de um sentido para as ausências em suas vidas. Após uma meia hora inicial impactante, alterna altos e baixos e termina soando um tanto esquemático em sua procura pela poesia (o que tem sido bem comum no cinema autoral). Não me incomoda o controle ou o cálculo, quando se chega a imagens de impacto que não são destruídas por um conceito asqueroso (como acontece nos filmes de Yorgos Lanthimos e Ulrich Seidl, entre outros). Aqui passamos longe do abjeto. O problema é o calculo excessivo para fazer poesia cinematográfica. Aí fica difícil aguentar, pois um filme, como lembra o diretor da história de Assim Estava Escrito, de Vincente Minnelli, não pode ser como um colar de pérolas sem o barbante que as segura. O barbante é importante para amarrar as pérolas, enquanto elas sozinhas não se sustentam. Penso que essa lição se encaixa melhor em Crônica do Espaço do que em A Metamorfose dos Pássaros, embora no segundo seja também um fantasma.

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*** nos próximos posts, textos sobre Trouble, Luz nos Trópicos, Antena da Raça, Victoria, Entre Nós Talvez Estejam Multidões, Responsabilidade Empresarial, Longa Noite, A Flecha e a Farda, O Ano do Descobrimento, Visão Noturna, O Tango do Viúvo e seu Espelho Deformador e os longas de Daniel Nolasco.

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