Quase na metade de Eu Estava em Casa, Mas…, começamos a ouvir uma lenta música que logo perceberemos ser uma versão da famosa “Let’s Dance”, de David Bowie. No lugar da batida dançante do bardo inglês, um folk sussurrado por M. Ward, numa versão que nos convida a apreciar a melodia de Bowie de um outro modo, sem o groove contagiante da produção de Nile Rodgers. A mudança de velocidade e de ritmo da famosa canção espelha a proposta com a duração feita pela diretora Angela Schanelec, uma proposta que convida o espectador a experimentar um outro tempo, cuja recusa implicará na recusa de todo o filme.
Porque há os momentos em que vemos diálogos e outras situações filmados num ritmo, digamos, mais naturalista. Mas quem não comprar o tempo narrativo que predomina na trama, que é o tempo da tentativa de reconstrução de uma vida após a perda de um ente querido, do clima gélido que não acalenta corações dilacerados, não compra o filme. Como, de resto, não vai comprar os filmes anteriores da diretora.
Aliás, depois da música de Bowie na versão de M. Ward, temos o mais longo diálogo, que na verdade é quase um monólogo, em que a protagonista fala a um cineasta (e performático, pelo que deu para entender) sobre a mentira e a verdade em um trecho do filme que ele apresentou no dia anterior. Percebemos sua empolgação ao falar do assunto. Seu marido falecido há dois anos era diretor de teatro. Manter-se conectada à arte, seja ela qual for, é manter-se conectada de algum modo ao marido. A conexão provavelmente já existia desde cedo, mas amplifica-se, torna-se mais intensa. A cena é bem longa, filmada em dois planos, um bem curto, com o encontro, outro enorme, em que a câmera os acompanha pela calçada. O diretor a ouve com interesse, apesar das palavras, que nos soam precisas, ficarem cada vez mais duras. “Estou ficando louca”, diz ela no fim do trajeto, desculpando-se pela intensidade da crítica. E na sequência seguinte, ela surta estupidamente com os filhos.
No meio de tantos silêncios, como de praxe no cinema de Schanelec, essas falas causam impacto, assim como os gritos de desespero, que, aliás, talvez passem um pouco do ponto no sentido da dramaturgia. Como iremos simpatizar com uma protagonista que trata daquele modo seus filhos? É verdade que Schanelec não parece se preocupar com isso, ainda que mostre, após o surto, que há muito carinho entre eles. Ela mostra as coisas e as pessoas como são, agradáveis ou desagradáveis, coerentes ou estranhas, acompanhando as variações de humor e os acidentes, por vezes somente depois de acontecidos.
A Escola de Berlim
Talvez a cinefilia de hoje valorize mais a Escola de Berlim, como um movimento que continuou rendendo frutos por mais de duas décadas, que o legado do novo cinema alemão. Isso se deve, penso, à irregularidade das carreiras de Herzog e Wenders, principalmente dos anos 1980 em diante, como também a uma certa internacionalização de suas obras, tendo os dois se tornado diretores do mundo, como Fassbinder desejou ser antes de morrer. O certo é que Christian Petzold, maior nome da Escola de Berlim, parece hoje mais amado, com cada novo filme despertando muito mais entusiasmo que Wenders e Herzog nos últimos vinte anos.
Angela Schanelec, que parece ter chegado antes a uma espécie de holofote crítico com seu Places in Cities (1998), só agora alcança um status semelhante ao do colega de escola Petzold, justamente por este novo filme, que lhe rendeu o Urso de Prata de melhor direção no festival de Berlim de 2019. Seu cinema me parece tão irregular quanto o de Petzold, mas considero Eu Estava em Casa, Mas…, com seus pequenos problemas, superior a praticamente todos os filmes de Petzold, exceto Gespenster e Yella, claramente os melhores dele. Não sei ao certo se é uma cineasta superior ao colega, mas certamente inferior não é.
Entendo que a Escola de Berlim não chega nem perto da qualidade poética e estilística da produção do novo cinema alemão. Mas há algo que passa de uma geração a outra. Tanto os filmes de Petzold quanto os de Schanelec, para ficarmos só nos dois mais conhecidos da escola, têm algo do Kluge (A Patriota, 1979) e do Wenders dos anos 1970, de filmes como Alice nas Cidades (1973), Movimento em Falso (1975) e No Decurso do Tempo (1976). Há algo nas inúmeras cenas de piscina, como também nas de dança, dos filmes de Schanelec que remetem a essa fase de Wenders, principalmente pelo modo como elas são inseridas na trama, quase como um descanso para a aflição, um momento poético mais livre. Se Petzold e Schanelec não alcançaram ainda grandes picos em suas carreiras, como todos os grandes do cinema novo alemão atingiam, de Schlondorff a Kluge, de Von Trotta a Fassbinder, de Shroeter a Wenders e Herzog, há, afinal, alguma continuidade entre as duas escolas, perceptível em algumas opções de estilo e narrativa.
Ozu?
Os silêncios de Eu Estava em Casa, Mas…, remetem, assim como o título, ao mais famoso dos filmes mudos de Ozu, Eu Nasci, Mas…, e à toda a série de Eu… Mas…, feita por Ozu nos anos 1930, ainda em seu período silencioso. As semelhanças se encerram aí. Se Ozu procurava as emoções humanas pelo uso de planos médios em alternância com os famosos pillow shots, e há algo já disso na série referida, Schanelec procura uma amplitude maior na escala de planos, com uma confiança tremenda no plano bem aberto, como nos filmes de Kiarostami. Se Ozu procurava contornar o realismo de sua época com o estilo frontal, que em seu período mudo ainda não estava contemplado predominantemente pela câmera estática e pelos rompimentos da quarta parede, Schanelec busca algo nas relações interpessoais que ultrapasse o realismo das situações substituindo-o por uma espécie de naturalismo da afetação que também ocorre nos filmes de Petzold (e na maioria dos filmes de Wenders, por sinal) e, ao mesmo tempo, e é aí que seu cinema tem, talvez, uma pequena vantagem em relação ao de seu colega de escola, acentuando a incomunicabilidade de certos sentimentos. Daí os riscos traduzidos em precisão (o longo diálogo sobre o filme visto) e extrapolação (os gritos com os filhos). São dois efeitos da impossibilidade de se lidar saudavelmente com certos sentimentos que Schanelec trabalha sempre de modo bem pessoal. E talvez a experiência do filme anterior, O Caminho dos Sonhos (2016), mais contido e menos ambicioso que Orly (2010), até no formato 1.33 em contraponto ao scope de Orly, tenha sido um passo necessário para dar conta dessa tradução, já que este novo dá a impressão de ser o mais lento e também o mais silencioso de seus filmes. Com momentos que lembram os primeiros filmes de Hal Hartley e uma maneira mais intelectual, e por vezes mais enigmática que a de Pertzold para lidar com relações amorosas, Schanelec se torna menos palatável para plateias dos circuitos de arte, tão dominadas por fórmulas do cinema contemporâneo. Quando ela erra, erra sozinha, por seus próprios deméritos, o que faz dela uma autora mais ousada que Petzold, embora também mais fria.