CURSO: O cinema americano dos anos 70 – A Nova Hollywood

Em meados dos anos 1960, Hollywood atravessava mais uma de suas crises. O cinema europeu invadia as salas de cinema dos EUA como nunca antes havia acontecido. A maneira encontrada pela indústria para mudar a situação foi abrir caminho para cineastas mais ousados, que incorporavam influências do cinema moderno europeu e dialogavam com a tradição do cinema clássico americano.

Surgia, assim, a geração da Nova Hollywood, que, formada em grande parte nas escolas de cinema, tomava de assalto a produção de filmes com sucessos como Bonnie & Clyde, Easy Rider – Sem Destino e O Poderoso Chefão.

O crítico de cinema, professor e pesquisador Sérgio Alpendre oferece, em junho de 2023, o curso online ‘Cinema Americano dos Anos 70: A Nova Hollywood’.

Serão cinco encontros semanais de 2h30 cada, às quintas-feiras, de 08/06 a 06/07. Vamos estudar alguns dos filmes mais interessantes desse que foi um dos períodos mais criativos de Hollywood, quando era possível conjugar o desejo artístico com as possibilidades de grandes bilheterias.

Por meio de trechos de filmes emblemáticos da época e de leituras essenciais sobre o tema, passaremos pelo que de mais importante foi feito na época, do cinema que alguns mestres estavam fazendo à evolução do cinema de horror, dos cineastas-alunos da Nova Hollywood (Scorsese, Coppola) aos outsiders Altman, Hopper e Cassavetes.

Foi um período em que Hollywood respirou o sonho do cinema autoral no seio da indústria. Um período que continua gerando bons frutos (James Gray, Michael Mann, David Lynch), a despeito da atual crise do cinema industrial americano.

AULA 1 – 08/06: PENSANDO RECORTES E ANTECEDENTES

– A crise dos grandes estúdios nos anos 1960 abre espaço para diretores jovens.

– Abrindo novos caminhos: Fuller, Mulligan, Aldrich, Lumet.

– Bonnie & Clyde e a onipresença do Vietnã.

– A Primeira Noite de um Homem e a influência do cinema moderno europeu.

– As periodizações da Nova Hollywood (1967-1980)

AULA 2 – 15/06: ENTRE DOIDOS E PADRINHOS

– Francis Ford Coppola e a escola de Roger Corman

– A trilogia O Poderoso Chefão e o novo jovem milionário de Hollywood.

– Dennis Hopper: após Easy Rider, o fracasso comercial de The Last Movie.

– outros filmes da BBS, de Head (Monkeys) a O Rei da Ilusão.

AULA 3 – 22/06: A MATRIZ CASSAVETEANA E A MATRIZ MANEIRISTA

– o outsider John Cassavetes e a raça humana.

– O humor irônico de Elaine May.

– o maneirismo cinematográfico.

– Martin Scorsese entre Cassavetes e o maneirismo.

– Brian De Palma e o questionamento da imagem.

AULA 4 – 29/06: NOVA HOLLYWOOD?

– Outros diretores ligados à Nova Hollywood (Friedkin, Bogdanovich, Ashby).

– A grandiosidade de Michael Cimino.

– A comédia intelectual de Woody Allen.

– Os outsiders: Robert Altman, Sam Peckimpah.

– Um diretor em seu próprio caminho, mas igualmente entre a tradição e a invenção: Clint Eastwood.

– Grandes mestres ainda filmavam nos anos 70: Cukor, Mankiewicz, Preminger, Kazan, etc.

AULA 5 – 06/07: FRANJAS DO CINEMA AMERICANO DOS ANOS 70

– Os filmes-catástrofe alimentando a indústria com o escapismo habitual.

– Breve histórico do cinema de horror americano.

– O advento do blockbuster (Spielberg, Lucas) e a antecipação do cinema republicano da era Reagan (Rocky – Um Lutador, Rocky II).

– O ocaso da Nova Hollywood e o que sobrou de invenção a partir dos anos 80 (David Lynch, Michael Mann, Abel Ferrara, John Sayles, Joe Dante, John Landis).

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O CINEMA AMERICANO DOS ANOS 70 – A Nova Hollywood

Professor: Sérgio Alpendre (Folha de S.Paulo e Leitura Fílmica)

carga horária total: 5 encontros – 12 horas e 30 minutos

QUANDO: de 08/06 a 06/07/2023, quintas-feiras, das 19h às 21h30

QUANTO: R$ 150,00 (1 parcela) curso (ou R$ 50,00 por aula)

ONDE: plataforma online – ZOOM

COMO: inscrições pelo (11) 97414-3534 (só whatsapp) ou sealpendre@gmail.com

Triângulo da Tristeza

Três motivos me levaram a ver este novo longa de Ruben Ostlund, e só quando os três se juntam é que consigo encarar tarefa assim penosa:

a) masoquismo, pura e simplesmente. É um motivo que não consigo explicar a não ser pelo desejo de ver uma obra com grande possibilidade de que eu vá odiá-la. Melhor ver um filme assim do que um modorrento qualquer, que nada me desperta;

b) o prazer de ver filmes, por pior que sejam, e extrair qualquer forma de pensamento a respeito deles, mesmo que seja um pensamento comparativo e negativo dentro de um estado de coisas do cinema contemporâneo;

c) uma obrigação profissional, o ônus de um crítico que pretende acompanhar o cinema de seu tempo. Isto se torna um exercício mais sadio quando se compreende melhor os dois motivos anteriores. Além disso, todos os tipos de trabalhos têm suas desvantagens, e essa – ver filmes ruins – me parece uma desvantagem bem tranquila, uma tarefa não tão penosa afinal.

Em um momento de Triângulo da Tristeza, o capitão do navio vivido por Woody Harrelson entra num duelo de citações com o capitalista russo interpretado por Zlatko Buric (que está muito parecido com o falecido crítico Jean Douchet). Num filme setentista de Ettore Scola ou Francesco Rosi, esse duelo seria mais refinado e ainda assim acharíamos fraco. No filme de Ostlund, é um dos poucos momentos que se salvam da desgraça, reforçando a pobreza conceitual e estética de seu cinema. Campo e contracampo com cada um deles no centro dos quadros enquanto a câmera simula o navio enfrentando a tempestade. E a partir daí, não sobra pedra alguma.

O navio naufraga por causa de uma granada que explode, alguns sobrevivem numa ilha deserta, onde o comunismo feminista é instalado naturalmente. O magnata russo lamenta a esposa morta na praia ao mesmo tempo que lhe tira o colar caro do pescoço e o esconde em seu sapato. A faxineira que se torna capitã porque ousou falar mais alto repreende dois jovens que roubaram salgadinhos de sua mochila durante a madrugada. Os milionários oferecem seus relógios rolex por um minuto de sono dentro de uma capsula que sobrou do navio e agora é dormitório das mulheres do grupo. Tudo isso poderia ser bacana, mas é tão pobremente construída a sátira social e já estamos tão desinteressados por todos os personagens que se torna apenas pueril.

Ostlund é um profissional da destruição. É um demolidor, mas não de uma maneira que possibilita a reconstrução futura. Não é a demolição de Buñuel ou Makavejev. Ele põe abaixo e deixa o solo infértil. O auto-intitulado “vendedor de merda” se apossa do navio dominado pela merda que explode de vasos sanitários entupidos. O próprio navio explode por uma granada vinda de um barco de piratas, que volta a seu dono, o rico fabricante de armas de guerra, como um presente do inimigo. Aliás, não veremos mais esse inimigo, mas se é inimigo dessa gente, pensamos, só pode ser nosso amigo.

Conclusão: com certos tipos de filmes, os preconceitos se revelam menos lamentáveis e sofridos que os pós-conceitos. Ou seja, por mais que esperasse o pior e que já era possível antecipar muitas coisas do filme unicamente pelo cartaz e pelo trailer, tudo pode se tornar ainda mais degradante. Que este dejeto em forma de filme tenha sido ovacionado e vencido a Palma de Ouro em Cannes não me surpreende, como não me surpreendia há muito tempo qualquer podridão que eu ouvia de lá. Cansados do que chamam de academicismo e desesperançados com o que chamam de novidade, os mercadores do cinema (o que envolve críticos, jornalistas, programadores e festivaleiros em geral) agora premiam e elogiam excrementos. Não vejo a possibilidade de se descer mais baixo (na carreira de Ostlund, em Cannes, nos festivais, na crítica, no cinema contemporâneo).

Ilusões Perdidas

Na Paris do século 19 mostrada por Giannoli após Balzac, uma boa crítica pode ser comprada por duas centenas de francos. Se a prática persistiu ao longo dos séculos, teríamos uma boa explicação para certas defesas estapafúrdias feitas nos Cahiers du Cinéma nos últimos anos. Do mesmo modo que a construção de uma polêmica motivada por críticas contrastantes, compradas pelo mesmo editor em jornais concorrentes, ajudaria na venda dos livros e na reputação dos escritores (“para se tornar famoso, você precisa de um inimigo famoso”, diz o editor interpretado por Gerard Depardieu). Nesse universo, ler os livros não é importante para se fazer uma boa crítica. A escolha certa das palavras basta.

Lembrei durante o visionamento que seis editoras brasileiras rejeitaram um texto de Machado de Assis enviado às cegas no final do século 20, numa reportagem da Folha de S.Paulo. Ou seja, passou-se das críticas compradas ao desconhecimento completo da arte. Lembrei também que Jean Douchet costumava dizer que os franceses prezavam os “jogos de palavras”, o que sempre deixa uma desconfiança, mesmo nos melhores críticos franceses de sempre (Douchet entre eles, obviamente).  

Mas um artista, mesmo um gênio como Balzac – o que diremos de um Giannoli? – que não reconhece a crítica como uma forma de arte (século 19, auge do entendimento da crítica como uma instância parasitária, dizia Northrop Frye), terá sempre diante de si o desafio do ego ferido, o que o torna pouco confiável também, ainda mais quando dramatiza um estado de coisas que tem muito de seu imaginário (o de Giannoli mais do que o de Balzac).

O protagonista começa a ganhar nossa simpatia quando diz que é incapaz de criticar o livro do inimigo por ser muito bem escrito. E no momento seguinte se torna ainda mais pequeno, pois fez o que seu editor queria: demoliu o livro. Neste Barry Lyndon fragilizado, os melhores momentos são os mais rápidos, em que o diretor imprime um ritmo scorseseano, menos kubrickiano. As intrigas de salão, os podres de homens que se vestem com a arrogância do lado certo, seja qual for esse lado, compõem o que é mais forte em Ilusões Perdidas. Jamais um filme monarquista, tampouco anti-monarquista. Sendo fiel a Balzac nesse ponto, é a natureza humana que está sendo explicitada por uma câmera que passa pelo buraco da fechadura.

Giannoli pinta um retrato terrível do jornalismo e da crítica, das editoras e dos produtores de arte, dos influenciadores e do público. Quando tudo é regido pelo dinheiro, como acreditar na pureza dos julgamentos e na nobreza das intenções? Hoje, os muitos que se vendem – na crítica, na produção artística, no atravessamento – disfarçam melhor. Alguns nem percebem que (ou quando) se vendem. O estrago é o mesmo.

Uma história da democracia brasileira

Texto escrito para a revista Aventuras na História, para publicação na edição de outubro, mas recusado. Entendo bem os motivos para a recusa, embora não concorde. No mais, a pesquisa foi bem ampla, então acho justo publicar o resultado aqui, com o consentimento da editora (que não teve culpa alguma na recusa).

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A intervenção militar na política e na sociedade é sinal de fraqueza tanto do Estado como da sociedade.

Frank D. McCann, historiador norte-americano

Por Sérgio Alpendre

O paulista Prudente de Morais foi o primeiro presidente civil da República, após dois militares, e o primeiro escolhido por eleição direta. Governou o país de 15 de novembro de 1894 a 15 de novembro de 1898, sendo também o primeiro presidente com mandato de quatro anos.

Sua ida ao Rio de Janeiro para tomar posse, contudo, parecia um filme surrealista da Checoslováquia dos anos 1960, conforme contada por Laurentino Gomes. Ao descer do trem, o presidente encontrou um saguão cheio de flores colocadas em homenagem a generais uruguaios que haviam chegado dias antes, ou seja, elas já estavam enrugadas e sem cores. Ninguém o recebeu, ninguém o cumprimentou. Foi se hospedar no Hotel dos Estrangeiros, sem uma alma para recepcioná-lo. Parecia um comum, um paulista qualquer em temporada de férias na capital. Quis marcar uma audiência com seu antecessor, o alagoano Floriano Peixoto, para tratar da transição do cargo, mas foi solenemente desprezado.

Em 15 de novembro, dia da posse, ninguém foi buscá-lo no hotel. A solução foi alugar um carro. Mas só estava disponível um calhambeque velho com um cocheiro malvestido. O cargo lhe fora transmitido por um secretário. Floriano Peixoto nem se dignou a aparecer. Na hora de voltar ao hotel, ficou novamente desamparado, sendo obrigado e pegar carona com o embaixador da Inglaterra.

No primeiro dia de trabalho, encontrou um palácio vazio, sem móveis e com estofados rasgados a golpes de baionetas. Na arte da destruição, os militares sempre foram mestres. Não havia melhor espelhamento da situação do país à altura: uma terra arrasada. O primeiro governo de um civil na República, presumia-se, teria uma missão quase impossível.

Eleito com mais de 276 mil votos, contra pouco mais de 38 mil de seu principal oponente Afonso Pena, Prudente de Morais mal conseguiu pacificar a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul e já teve de enfrentar a pequena revolta da Escola Militar e, principalmente, o movimento rebelde de Canudos, comandado por Antônio Conselheiro.

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Antes de continuar, um breve aviso. Este texto pode ser lido como uma aventura na história, ou pela história. Na impossibilidade de uma análise objetiva da história democrática no Brasil no espaço de um artigo, resta-nos estudar alguns historiadores que a investigaram para chegarmos, talvez, a uma nova reflexão. Desta maneira, é menos um texto elucidativo do que um texto que convida a explorar o caminho do pensamento. Por sua própria natureza, está exposto a muitos riscos, assim como nossa democracia.

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Crise? Que crise?

Quem diz hoje que a democracia está em crise parece ignorar que essa sempre foi a condição brasileira: uma eterna crise do que quer que seja, até mesmo de brasilidade. Crise das direitas, crise das esquerdas, crise dentro dos quarteis e dentro do congresso, crise na colônia, na monarquia e na república. O estado de crise é nossa condição desde a chegada de Cabral.

Há quem diga, com certa razão, dependendo do ângulo de onde se olha, que a democracia nunca existiu no Brasil. Em outubro de 2019, no décimo mês de um governo que flerta com o autoritarismo dia sim, dia também, Vladimir Safatle dizia, num debate do ciclo “Democracia em Colapso”, que “a democracia é algo que nunca esteve no horizonte concreto da maioria das pessoas desse país”. O filósofo teria dito, conforme lembra Isabella Fiuza, do site Jornalistas Livres, que “o principal elemento constituinte da sociedade brasileira se fundamenta em um modelo latifundiário escravista que perdura até os dias de hoje”.

Não é uma posição isolada. Poucos anos antes, em entrevista para a Rede Brasil Atual, o renomado jurista Fábio Konder Comparato (1936), ao comentar sobre decisão do STF que abria as portas para o impeachment de Dilma Rousseff, ponderou que a democracia nunca existiu neste país porque democracia “é poder supremo do povo”.

O sociólogo Aldo Fornazieri dizia, em 2018, que não existia democracia no Brasil, ao menos naquele momento, subentende-se. E depois argumenta, com razão, que não é possível existir democracia onde há desigualdade social. Ou seja, para ele também, no fundo, nunca existiu democracia por aqui.

Em Da Monarquia à República: Momentos Decisivos (1998), Emília Viotti da Costa (1928-2017) dedica um capítulo ao que ela chama de “mito da democracia racial no Brasil”, a partir do revisionismo crítico feito por historiadores como Octavio Ianni e Florestan Fernandes à ideia de democracia racial defendida anteriormente por Gilberto Freyre. Vozes negras e indígenas sempre foram caladas. A autora ainda contribui, nesse livro, para alguns esclarecimentos sobre como foi mudando o entendimento da Proclamação da República e de seus desdobramentos ao longo dos anos.

Em entrevistas e declarações para a imprensa, o jurista e pensador Raymundo Faoro (1925-2003) sempre demonstrou um entendimento profundo do jogo político, antevendo até mesmo alguns movimentos, como a dissidência do PMDB que faria nascer o PSDB em 1988 ou a eleição de Lula mesmo com as divisões da esquerda. Para Faoro, em entrevista de 2000 publicada na Carta Capital, a história da democracia no Brasil ainda não havia começado. Como intelectual de esquerda, autor de um livro essencial chamado Os Donos do Poder (1958), em que investiga a história do patronato brasileiro desde a origem de Portugal, talvez ele mudasse de opinião se tivesse visto alguns anos do governo Lula (tendo morrido em maio, viu apenas alguns meses). Por outro lado, talvez considerasse um governo comprometido demais com as alianças para pensar realmente no povo.

Já Jorge Ferreira, no livro O Tempo da Experiência Democrática, ao comentar o período entre 1945 e 1964, disse que os historiadores que negam a experiência democrática do período “procuram, muitas vezes, uma receita prévia de democracia, esquecendo-se de que ela não nasce pronta, mas é conquistada, ampliada e inventada”. Defendendo que a marca do regime democrático é a incompletude, o historiador comemora as resistências do período contra tentativas de golpes autoritários e se espanta com a curiosa complexidade da população brasileira, que entre o fim de agosto e o começo de setembro de 1961 resistiu à tentativa de golpe de estado por parte dos ministros militares e do governador da Guanabara Carlos Lacerda e menos de três anos depois assistiu passivamente à tomada do poder por militares e ao início de uma ditadura que durou 21 anos.

Palavra-chave

A palavra retorna. Complexidade: engloba reações militares pró-democracia contra militares golpistas do mesmo período e reação contundente de políticos de direita contra o veto à posse de João Goulart em 1961, por exemplo. Ou que existam organizações de policiais antifascistas. Ou ainda que, numa esfera mais corriqueira, o mesmo eleitor que apertou 17 nas urnas em 2018 pode ser um cordial vizinho de fala mansa e ótimas intenções com a comunidade.

Como pensar, então, numa possível história da democracia no Brasil, se for verdade que nunca tivemos esse tipo de governo? E se nunca a tivemos de fato, o que seriam os anos em que não estávamos em uma ditadura, seja a de Getúlio Vargas (1937-1945), seja a dos militares (1964-1984)? Dizer que já estivemos sob uma democracia pode ser tão simplório quanto dizer que nunca houve democracia no Brasil. Porque tudo depende do aspecto que se quer dimensionar, com o perdão dos que rejeitam, por vezes com razão, relativismos dessa espécie.

Parece ser uma condição de alguns países, notadamente os menos desenvolvidos, que a democracia esteja sempre nesse estado, numa eterna crise que impede até que seja entendida como tal. Essa crise pode ser menor em alguns períodos da história, como no período entre 1945 e 1964 ou entre 1995 e 2015. Mas nunca pudemos dizer que vivíamos numa democracia plena, em que a grande parcela da população em condição mais frágil tinha alguma voz. Sempre estivemos sob a ameaça de oligarquias e suas alianças espúrias. Para manter o status quo, os setores conservadores da sociedade brasileira se aliam até mesmo a fascistas.

Talvez o maior problema de qualquer governo é que para ter governabilidade é necessário o apoio de setores conservadores da sociedade, em suma, dos donos do dinheiro e dessa entidade chamada mercado. Desse modo, por mais progressista que seja um governo, ele tende ao centro por causa das negociações necessárias para se manter no poder.

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Procurando um resumo do conceito

No Dicionário de Filosofia Política, o verbete assinado por Renato Janine Ribeiro diz: “democracia significa, literalmente, poder do povo. Isso não quer dizer governo pelo povo”. Diz também que “na democracia, decide o demos, povo, mas isso não quer dizer que toda e qualquer medida de governo seja sua”. Mais tarde, o filósofo explica que “em Atenas estava-se mais perto da ideia de que o povo tudo decidisse”, e que “a democracia é o poder do homem comum”. Finalmente, Janine Ribeiro entra no cerne do problema das democracias modernas:

por um lado, ela se expandiu, enquanto liberdade de expressão, de organização e de voto numa escala nunca antes vista. (…) Por outro, porém, ela está ainda demasiado confinada à esfera política. Somos iguais só nas eleições e, mal elas terminam, um surdo terceiro turno faz que decisões tomadas pelo demos sejam revertidas ou reduzidas pelos poderes da desigualdade, basicamente, mas não só, o capital. As relações de trabalho não foram democratizadas. As relações afetivas – amizade e amor – tampouco, mas parecem estar mais perto de sê-lo. 

Para Norberto Bobbio (1909-2004), que no Dicionário de Política (1983) fez um longo e elucidativo verbete sobre o conceito de democracia e sua mudança ao longo dos tempos, a democracia perfeita não havia sido realizada em nenhuma parte do mundo até então, sendo, portanto, uma utopia, e deveria ser “simultaneamente formal e substancial”. Em outro livro, Liberalismo e Democracia (1985), Bobbio passa pelo maior fantasma das democracias, o da ingovernabilidade. Entendendo que “uma das características da sociedade democrática é ter mais centros de poder”, esse poder se tornaria mais difuso e fragmentado conforme a sociedade permita mais participação, dissenso, “a proliferação dos lugares onde se tomam decisões coletivas”. Daí podemos entender que os conflitos oriundos desses diversos centros de poder enfraquecem a democracia, tornando-a um regime em que a ingovernabilidade acontece, ou em que a democracia é de fachada, meramente superficial, permitindo mais que um “surdo terceiro turno”, como dizia Janine Ribeiro, em que a verdadeira democracia fosse esfacelada.

Já contrapondo e aproximando os neoliberais aos democratas (“de irmãos inimigos a aliados”), Norberto Bobbio escreveu, ainda dentro da questão da ingovernabilidade:

Todas as democracias reais, não a ideal de Rousseau, nasceram limitadas, no sentimento já esclarecido de que às decisões que cabem à maioria foram subtraídas desde o início todas as matérias referentes aos direitos de liberdade, chamadas precisamente de “invioláveis”.

O filósofo francês André Comte-Sponville também criou seu Dicionário Filosófico. Nele, dedica um pequeno e elucidativo verbete à democracia, em que defende que não se deve confundir a democracia com a república, “que seria uma forma pura ou absoluta – una e indivisível, laica e mesmo igualitária, nacional e universalista”. E completa: “a democracia é um modo de funcionamento; a república, um ideal. Isso confirma que a democracia, mesmo impura, é a condição de qualquer república”.

O italiano Nicola Abbagnano lembra, a partir do importante Les Six Livres de la République (1576), do francês Jean Bodin, que “a soberania, que é o caráter fundamental do Estado, é una e indivisível: o Estado consiste na posse da soberania. O governo consiste, pelo contrário, no aparato através do qual tal poder se exerce”. E que “numa monarquia, a soberania reside no rei, mas ele pode delegar amplamente seu poder e governar por isso democraticamente, enquanto uma democracia pode governar despoticamente”.

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O fim do Império e o começo da infindável crise democrática brasileira

Não se trata de defender aqui a monarquia. Pelo contrário: é preferível uma democracia sempre em crise a uma monarquia ou uma aristocracia. Mas se para haver democracia é necessário haver república, a história brasileira mostra que o parto foi doloroso e deixou sequelas.

No Manual de Filosofia Política (2012), o professor de ética e filosofia Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros define desta forma a república, a partir dos diálogos Da República, de Cícero (106 A.C.-43 A.C.): “um agrupamento de homens em torno de interesses comuns”. O difícil, na equação, é atingir esses interesses comuns. Quanto maior a população, mais difícil se chegar a eles. Ainda mais porque um grupo de poderosos terá uma noção diferente dos interesses comuns do que teria um grupo com pouca ou nenhuma voz nas escolhas públicas.

A democracia no Brasil deveria começar com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, ou em 1894, quando o primeiro presidente civil, Prudente de Morais, é eleito diretamente, sucedendo os dois primeiros, militares, os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Como militares e democracia não andam juntos, a segunda data faz mais sentido de ser festejada, embora também tenha seus problemas, pois as mulheres eram impedidas de votar e tomava o poder a oligarquia dos cafeeiros ricos de São Paulo, que depois dividiriam o poder com os mineiros na chamada “república do café com leite” que durou até 1930.

Os anos 1930 foram de revoluções – as de 1930 e 1932 – e de um golpe, o de 1937, que iniciou a ditadura de Getúlio Vargas. A redemocratização começa em 1945. Alguns historiadores apontam essa data como a de início da democracia, por motivos que veremos mais adiante. Essas periodizações, contudo, são sempre discutíveis.

Laurentino Gomes diz que o 15 de novembro não é tão comemorado, no Brasil, como o 22 de abril e o 7 de setembro e até mesmo algumas datas regionais. A democracia não nasce imediatamente com a República, e quando finalmente nasce, já está em crise. Nos dez primeiros anos da República, incluindo, portanto, os primeiros governos civis, os inúmeros conflitos em todo o Brasil fizeram correr muito sangue, mostrando que por aqui as coisas caminhariam de modo mais tortuoso, com muitos obstáculos pela frente.

Quase dois anos depois da Proclamação da República, em 3 de novembro de 1891, o Marechal Deodoro da Fonseca, alagoano, fecha o congresso e declara Estado de Sítio numa tacada só. Anuncia assim a primeira ditadura militar desse bebê chamado República. Doente, ele renunciaria em 23 de novembro, vítima das reações aos seus atos intempestivos, dando o lugar a seu vice, o também alagoano Floriano Peixoto, conhecido como o Marechal de Ferro. Segundo Laurentino Gomes, “o sangue derramado nesse período [de seu governo, 1891-1894] iria definir para sempre os rumos da República brasileira”.

Combatendo as revoltas com violência, Floriano ganhou tantos aliados quanto inimigos, abrindo involuntariamente o caminho para seu sucessor, Prudente de Morais. A situação do país, contudo, permaneceu praticamente ingovernável, até que um atentado mudasse um pouco as coisas.

Em 5 de novembro de 1897, Prudente de Morais quase foi assassinado a facadas por um militar de baixa patente chamado Marcelino Bispo (a coincidência com o nome do autor da facada em Bolsonaro, Adélio Bispo, é notável). Quem salvou Prudente foi o Ministro da Guerra, o Marechal Carlos Machado Bittencourt, que ao proteger o presidente levou ele próprio as facadas, falecendo em seguida.

Essa tentativa de assassinato desmascarou um complô de militares e adversários republicanos. Como reação, Prudente de Morais conseguiu um novo Estado de Sítio, que lhe deu finalmente alguma tranquilidade para governar e passar a presidência para outro civil, Campos Salles. Este encontrou um país praticamente falido e iniciou uma “política dos governadores” que, segundo os historiadores, durou até 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas. Com essa política, os estados tiveram uma autonomia nunca antes vista, e oligarquias cresceram por todos os lados.

Após Campos Salles, que governou de 1898 a 1902, os presidentes se sucederam enquanto o Brasil parecia eternamente fadado ao subdesenvolvimento e às oligarquias: Rodrigues Alves (1902-1906), Afonso Pena (1906-1909), Nilo Peçanha (1909-1910), Hermes da Fonseca (1910-1914), Venceslau Brás (1914-1018), Delfim Moreira (1918-1919), Epitácio Pessoa (1919-1922), Artur Bernardes (1922-1926) e Washington Luís (1926-1930), até que Júlio Prestes, eleito diretamente para a presidência, não pode assumir por causa da Revolução de 1930, que colocou o país sob uma junta provisória que acabaria entregando a faixa para Getúlio. Este governou de certo modo democraticamente até 1937, quando, num golpe, instaurou o Estado Novo, tornando-se o ditador até 1945 e retornando depois, desta vez por eleição direta, no período entre 1951 e agosto de 1954, quando deixou o governo e o mundo, após receber pressões de todos os lados.

Afinal, quando começa a democracia no Brasil?

Para responder à pergunta, três possibilidades parecem mais consideráveis: a) ela ainda não começou; b) com o primeiro presidente eleito diretamente, ou seja, Prudente de Morais, mesmo que nem todos pudessem votar àquela altura; c) quando aconteceu a eleição presidencial de 1945, primeira em que as mulheres votaram. Esta última, se não for o verdadeiro início da democracia brasileira, é no mínimo o momento em que ela atingiu um pico jamais visto até então.

Alguns momentos de elaboração de novas constituições também podem ser entendidos como democráticos. Foram sete, no total, as constituições: 1824 (ainda no Império), 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988. As de 1946 e 1988 são especialmente marcantes por terem acontecido após ditaduras, logo, em momentos de reconfiguração de uma possível democracia. A de 1934 procurava consolidar Getúlio Vargas no poder, prevendo novas eleições em 1938. A de 1937 anulou essa possibilidade e estabeleceu o Estado Novo, período autoritário do governo de Vargas. A constituição de 1967, ainda mais autoritária que a de 30 anos antes, visava institucionalizar o governo militar imposto com o golpe de 1964.

De todo modo, o período entre ditaduras, ou seja, de 1945, quando terminou o Estado Novo, até 1964, quando se iniciou a ditadura militar, foi de alternância entre dois projetos para o país na preferência dos eleitores, segundo o historiador Jorge Ferreira. O primeiro uniu comunistas e trabalhistas na ideia de um estado forte e desenvolvimentista, tendo como principais protagonistas os políticos do PSD (Partido Social Democrata) e do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). O segundo tinha ênfase no antigetulismo, no moralismo, no elitismo e no anticomunismo, na defesa de um liberalismo conservador; estava concentrado sobretudo na UDN (União Democrática Nacional).

As três grandes crises apontadas por Ferreira – o cerco a Getúlio Vargas culminando no agosto de 1954, o golpe preventivo do general Henrique Teixeira Lott em novembro de 1955 para garantir a posse de Juscelino Kubitschek e a Campanha da Legalidade de agosto de 1961 para garantir a posse de João Goulart – mostraram que qualquer aproximação que pudesse haver entre as forças políticas e o desejo de reformas sociais profundas terminava sufocada pelas forças conservadoras, até o sufocamento maior de abril de 1964. Após três reações bem-sucedidas a essas ameaças, houve esse ataque que não permitiu reação imediata.

Raymundo Faoro é bem preciso ao dizer que o projeto da direita brasileira vem de Dom João VI, e que nos últimos anos, quando confrontada, a direita foi vencedora nas duas estratégias tomadas, a da violência (o golpe de 1964) e a astúcia (as eleições indiretas após a campanha pelas Diretas Já), garantindo uma transição conciliadora, que afastasse o perigo de ruptura (à época, possível com Brizola ou Lula). Quando lembramos que Lula teve de fazer uma “Carta aos Brasileiros” para apaziguar o empresariado prometendo não alterar profundamente a economia do país, entendemos o que Faoro queria dizer.

O impasse de uma nação, ontem como hoje

Em 1967, o sociólogo Octávio Ianni escreveu que as duas opções para a sociedade brasileira eram o fascismo ou o socialismo. Ao temer o socialismo muitas vezes de forma irracional, a burguesia não hesitou em escolher o fascismo, apoiando o golpe militar e a ditadura que se intensificou em dezembro de 1968, com o AI-5. Por mais que os acontecimentos futuros e mesmo uma análise apurada sobre a inevitabilidade ou não do golpe de 1964 possam complexificar a formulação de Ianni, é inegável que esse impasse surgiu muitas vezes no Brasil, ainda que camuflados por outras palavras de ordem (contra a monarquia, política dos governadores, populismo, doutrinação marxista, venezuelização etc.).

De algum modo, parece que estamos vivendo o mesmo impasse em 2022. O fascismo agora é mascarado por uma rede de fake news e por uma entrega do país ao capital estrangeiro. O socialismo é visto em governos recentes que permitiram lucros milionários aos bancos ou em reivindicações por moradia, numa distorção grotesca que parece ter lugar exclusivamente no Brasil. Entre um projeto de governo que assimila o fascismo sem qualquer crítica e um projeto de centro que incorpora alguns anseios de centro esquerda e até da esquerda, mas também contempla a direita, boa parte da classe empresarial se faz de cega e opta pelo primeiro, mesmo que o custo seja o empobrecimento do país e sua falência educacional e cultural. A história da democracia brasileira mostra que todas essas distorções e o egoísmo das oligarquias nos acompanham desde sempre. O impasse só será resolvido quando as classes dominantes se imbuírem de um verdadeiro patriotismo, capaz de fazer com que os elos mais frágeis da sociedade se fortaleçam, alavancando todo o país rumo ao desenvolvimento sempre sonhado.

9ª Mostra de Gostoso – A Filha do Palhaço

Por Carla Oliveira

A filha do palhaço, no novo filme de Pedro Diógenes, é uma adolescente doce e impulsiva, vivida pela estreante Lis Sutter. O palhaço é um ator, interpretado por Demick Lopes, que se apresenta travestido em shows humorísticos para turistas na capital cearense. A aproximação desses personagens, separados desde que Joana era bem pequena, é o centro desse filme comovente. A menina, prestes a se mudar com a mãe para Goiânia, decide passar uns dias com o pai, contando à mãe que estaria na casa de uma amiga. Renato se separou delas quando se apaixonou por um homem, com quem viveu por muitos anos, até perder seu grande amor em um acidente de trânsito. É também um personagem encantador, com seus defeitos e fracassos.

O grande trunfo do filme de Pedro Diógenes é o de se lançar sem medo em situações com carga melodramática. Difícil não se emocionar. Seus personagens são sólidos e muito bem interpretados, e a construção da relação deles se dá de forma tocante, e também delicada. Ela olha as fotos guardadas pelo pai, assiste aos seus shows, defende-o quando um frequentador do bar o ofende. Ele a leva para escolher maquiagem, consola-a em seu choro adolescente, quando, sem conseguir falar, a menina se desespera por um amor que se desfez. Eles saem à noite, bebem, dançam e fazem novos amigos. São lindas todas as cenas em que Renato se apresenta artisticamente, assim como as que mostram parte da peça performada pelos personagens de Jesuíta Barbosa e Jupyra Carvalho, a qual Renato e Joana assistem. O filme faz uma bela homenagem aos artistas que fazem humor em circunstâncias difíceis. A cena de dança, ao som de uma música de Joanna, também é das mais bonitas, assim como o final do filme, quando há consolo para o choro do palhaço. Do jeito que dá, uma bela família brasileira é reconstruída e aprende a cuidar uns dos outros.

46ª Mostra SP: breve balanço

Terminada minha cobertura da 46ª Mostra Internacional de São Paulo, anoto aqui, para quem se interessar, os filmes vistos pela primeira vez, do melhor ao pior, com links para os textos que escrevi para a Folha, o site Leitura Fílmica e este blog.

O Filme da Escritora (So-Seol-Gaq-Ui Yeong-Hwa, 2022), de Hong Sang-soo

Um dos melhores filmes de Hong Sang-soo nos últimos dez anos.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/10/o-filme-da-escritora-e-joia-na-mostra-de-sp-que-ve-poesia-dos-encontros.shtml

Benção (Benediction, 2021), de Terence Davies

A pontuação inventiva e a classe da encenação de Terence Davies.

Armageddon Time (2022), de James Gray

Tocante, meio autobiográfico e nada racista relato de uma infância.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/10/armageddon-time-na-mostra-de-sp-fala-sobre-as-dores-de-amadurecer.shtml

Até Sexta, Robinson (À Vendredi, Robinson, 2021), de Mitra Farahani

Belo encontro entre almas de cinema.

Restos do Vento (2022), de Tiago Guedes

Um filme que inicia como Saló e se desenvolve como Mystic River.

Crônica de uma Relação Passageira (Chronique d’une Liaison Passagère, 2022), de Emmanuel Mouret

No lugar habitualmente ocupado pelo próprio Mouret, um ator sublime: Vincent Macaigne.

Aftersun (2022), de Charlotte Wells

Entre Joanna Hogg e o começo de Lucrecia Martel.

Alcarrás (2022), de Carla Simón

Filme agradável pelas crianças, mas um tanto esquecível.

Objetos de Luz (2022), de Acácio de Almeida e Marie Carré

Jogos de imagens que brincam com a luz.

Don Juan (2022), de Sèrge Bozon

Um começo inspirado e um desenvolvimento meio frouxo, mas ainda satisfatório. Pena porque parecia ser bem melhor.

Distopia (2021), de Tiago Afonso

Denúncia importante num formato meio quadrado.

Vocè Tem que Vir e Ver (Teneis que Venir a Verla, 2022), de Jonás Trueba

Dois casais mais chatos que aberturas de festivais se encontram mais por obrigação do que por prazer e discutem sobre diversas coisas. Cinema pequeno burguês, de gosto médio, com citação ao filósofo da moda (Sloterdijk) e praticamente sem humor.

O Deus do Cinema (Kinema no Kamisama, 2021), de Yoji Yamada

Yamada ultrapassa a faixa do melodrama e se torna piegas demais. O personagem é simpático, mas com essa vida, só bebendo mesmo.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2022/10/o-deus-do-cinema-faz-dramalhao-e-nao-sabe-aproveitar-personagens.shtml

Com Amor e Fúria (Avec Amour et Acharnement, 2022), de Claire Denis

Uma pena que os dois piores filmes que vi pela primeira vez nesta 46ª Mostra foram de diretoras que já admirei. No caso da Denis, acredito que haja um certo desconforto com o estilo que ela própria ajudou a popularizar, o tal do cinema de fluxo e o que sobrou dele.

Camarera de Piso (2022), de Lucrecia Martel

Curta-metragem exibido antes de Distopia, que nos indica não só uma falta de inspiração de sua diretora, mas uma completa incapacidade de perceber isso.

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+++ texto com dicas da programação:

+++ texto sobre os dois filmes de Jean Eustache

46ª Mostra SP: Restos do Vento

Em toda edição da Mostra SP é exibida ao menos uma pérola do cinema português. A deste ano, na 46ª edição, é este Restos do Vento, mais recente longa de Tiago Guedes (de A Hermada).

O filme começa como Máscaras (Noémia Delgado, 1976), logo evolui para uma atualização do Saló de Pasolini no interior português e lá pelo final do primeiro terço revela sua estrutura semelhante a de Sobre Meninos e Lobos, de Clint Eastwood. Os dados dessa semelhança podem ser alinhados da seguinte maneira:

a) ambos começam com meninos (mais crescidas no filme de Guedes, já que são adolescentes de 16 ou 17 anos aproximadamente); um deles, por ser mais ingênuo, termina sofrendo as consequências do mundo cão em que está inserido: uma surra no filme de Guedes, um rapto por pedófilos no filme de Eastwood.

b) nos dois filmes acompanhamos a vida desses mesmos meninos cerca de 30 anos depois, os traumas dos eventos passados e o ingênuo levando uma vida meio perdida, como um fantasma (em Boston e casado no filme de Eastwood, numa aldeia pequena e solitário no filme de Guedes).

c) a criança do valentão da cidade é assassinada. Um menino de 16 ou 17 anos no filme português, uma moça de 19 anos no filme americano. O principal suspeito, pelo menos para o espectador, é o adulto traumatizado; ainda que no filme de Eastwood os motivos para o crime sejam muito frágeis para uma real desconfiança, o personagem chega ensanguentado em casa na mesma noite que a filha do valentão morre.

d) nos dois casos o desfecho é trágico para o falso culpado, um desfecho motivado, em última instância, por uma figura feminina que acredita estar fazendo a coisa certa, mas desencadeou o sentimento de vingança.

e) Tiago Guedes também adere a uma dramaturgia sólida, calcada na interpretação do elenco e nas paisagens da região montanhosa portuguesa, que ecoam o Mystic River e o parque do filme de Eastwood.

Com essas semelhanças todas, é ainda assim um filme notável este Restos do Vento, dirigido com rigor nos enqudramentos e com um senso justo de ritmo, o ritmo do interior português. E que ator é Albano Jerónimo (foto). Graças a ele, Laureano se torna um dos grandes personagens do cinema contemporâneo.

Elvis

Nunca espero grande coisa de um filme de Baz Luhrmann. Na verdade, não espero nem pouca coisa. Se o filme não for um desastre, já é um ganho. Se for “assistível” sem grande sacrifício, melhor ainda. Se for bom, podemos nos preparar que vai começar a chover martelos.

Foi com baixíssima expectativa, então, que comecei a ver seu mais recente longa, Elvis, sobre a lendária figura que colocou o rock no mapa e começou a mexer com a segregação racial de um modo que, à época, só um fenômeno de popularidade que fosse branco conseguiria.

Não é uma cinebiografia tradicional. Muitos anos se passam em minutos, o que é ruim, apressado e um tanto frustrante, e muitas coisas não passam de especulações. Mas não há um desrespeito com sua vida e história como aconteceu com Marilyn Monroe em Blonde. As especulações parecem bem viáveis de terem acontecido, senão do jeito que o filme mostra, ao menos de forma aproximada.

Baz Luhrmann se mostra até comportado para seus padrões, com um nível de afetação consideravelmente inferior aos de Romeu e Julieta ou O Grande Gastby, por exemplo. É quase como um filme que Martin Scorsese faria em seus dias mais acelerados, com o senão de que Scorsese se sai melhor nos momentos de pausa, que se aproximam de um classicismo ou até de um academicismo. Já Luhrmann chega perto de um registro televisivo quando cai no academicismo. E uma alternância sem escalas entre afetação, mesmo que dosada, e academicismo frouxo que dure duas horas e meia fica no limite do assistível.

Três aspectos, contudo, chamam a atenção, positivamente, em Elvis:

a) a iniciação do menino Elvis com a música negra: de um lado, o barracão, a prostituta, o bluesman; do outro, a busca por ascese, o gospel, a entrega aos chamados do Paraíso. Esses dois vetores, o mundano e o sagrado, serão fundamentais para a persona que Elvis criou em seus primeiros anos, e que incomodaram bastante a nação falsamente puritana e racista.

b) a maneira como o moço Elvis mexia com os jovens sexualmente, com movimentos corporais nunca antes visto, e a câmera capta as reações das moças na plateia anunciando um novo fenômeno, importante para impulsionar a liberação sexual que viria nos anos 1960.

c) a astúcia do vilão Coronel Tom Parker e sua capacidade de fazer com que todos comprem o que ele vende, incluindo o próprio Elvis entre as pessoas que ele manipula apaixonadamente. É uma figura extremamente controversa, demoníaca nas biografias, que o filme trata de humanizar sem atenuar o demônio que existe nele. Claro que a escalação de Tom Hanks para o papel, mesmo com uma maquiagem que o transforma em monstro, contribui para o encanto do mal que o personagem exerce.

Não sofreremos com chuva de martelos, mas no balanço é possível assistir a Elvis sem sacrifício.

Os 20 melhores filmes dos anos 1980

Quando Pedro Lovallo convidou para uma lista de 20 melhores filmes dos anos 1980, pensei em fazer os 20, mais 80, repetindo diretores nessa segunda como uma espécie de mapeamento da década segundo meu entendimento (falho ou não). Logo vi que seria uma tarefa impossível de realizar por motivos simples: quanto maior a lista, mais doeria algum esquecimento, e certamente haveria muito mais de um.

No final, fiz só a de 20 mesmo, com uma regra única – filmes que revi por algum motivo nos últimos cinco ou seis anos, não mais que dez, com uma gloriosa exceção: O Rio dos Vagalumes, um dos filmes que me proporcionou a experiência mais marcante quando visto na tela de cinema (Cinesesc), numa Mostra Internacional de São Paulo do início dos anos 1990, e que não tem como rever senão numa cópia em VHS sem legendas alguma (prefiro esperar ou ficar com minha experiência da épóca).

Essa regra explica por que tem poucos filmes franceses, e nenhum de Hong Kong ou de Taiwan, filmografias que descobri e garimpei no início dos anos 2000 e da era dos downloads (salvo os filmes HK de John Woo, que chegou a ser exibido nos cinemas paulistanos nos anos 1990). Certamente uma lista de 100, sem essa regra, teria vários de Hong Kong, mais que de Portugal. Numa de 200, a proporção seria ainda maior.

Eis a lista final enviada para o Pedro na noite de ontem, 13 de julho

(ordem de preferência de hoje, um filme por cineasta)

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Silvestre (João César Monteiro, 1982)

O Portal do Paraíso (Michael Cimino, 1980)

Kageroza (Seijun Suzuki, 1981)

Honkytonk Man (Clint Eastwood, 1982)

Francisca (Manoel de Oliveira, 1981)

O Rio dos Vagalumes (Eizo Sugawa, 1987)

A Idade da Terra (Glauber Rocha, 1980)

Passion (Jean~Luc Godard, 1982)

Ana (Antonio Reis e Margarida Cordeiro, 1981)

Um Tiro na Noite (Brian De Palma, 1981)

E La Nave Va (Federico Fellini, 1983)

Parceiros da Noite (William Friedkin, 1980)

Touro Indomável (Martin Scorsese, 1980)

O Império do Desejo (Carlos Reichenbach, 1981)

Gêmeos – Mórbida Semelhança (David Cronenberg, 1988)

O Desespero de Veronika Voss (Rainer Werner Fassbinder, 1982)

Mur Murs (Agnès Varda, 1980)

Kagemusha (Akira Kurosawa, 1980)

As Três Coroas do Marinheiro (Raul Ruiz, 1983)

O Morro dos Ventos Uivantes (Kiju Yoshida, 1988)

Música e lágrimas (sobre Euphoria)

Texto escrito em junho de 2019 e engavetado por esquecimento.

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Creio já ter escrito, no antigo chip hazard, que música e pintura foram minhas primeiras paixões, antes do cinema.

A música veio antes. Minha mãe conta que desde bebê eu não parava de cantar. Depois vieram as paixões pela música do Roberto Carlos (fase dos anos 60), Beatles, Queen, Rolling Stones, heavy metal, progressivo, new wave, pós-punk, nessa ordem, para depois abrir para ainda outros estilos.

A pintura surgiu ainda na adolescência, porque minha mãe e minhas duas tias pintavam amadoristicamente e as três tinham a coleção de pintura da Abril Cultural que eu devorei na época.

O cinema sempre esteve à sombra dessas duas outras paixões, e quando passou na frente meio que foi um pouco influenciado por elas, de modo que uma música bem usada num filme ou um enquadramento com valor pictórico chamam minha atenção de pronto.

Tem, obviamente, o lado oposto dessa moeda. Se a música, mesmo quando excelente, é mal usada, o filme tende a cair na minha percepção, como é o caso do mau uso de “Fala”, dos Secos e Molhados, que puxa para baixo A História da Eternidade.

Qualquer dia elaboro uma lista com os que considero bons usos de grandes músicas no cinema. Por enquanto, chamou-me a atenção “Fly me to the Moon”, na versão de Bobby Womack, no segundo episódio da série Euphoria, da HBO.

Nessa série, as semelhanças com a obra de Larry Clark e seu sensacionalismo no trato com as inquietações adolescentes me afastavam, mas algumas coisas me atraíam. Não só Zendaya, que interpreta a protagonista Rue, mas sua irmã e sua mãe no filme são atrizes excelentes. As amigas adolescentes, em grande parte, fazem ótimas interpretações. Há, sobretudo, um traficante do bem chamado Fez, que cuida de Zendaya sem abrir mão de fazer algum dinheiro vendendo e comprando de gente muito perigosa.

Aí surge o clipe com a música de Womack, inserida num momento em que Rue tenta resgatar memórias de seu último ano para um exercício escolar. Uma sequência musical como essa, muito bem concatenada dentro da narrativa, levanta uma série que ia na corda bamba, entre um acerto tímido e o fiasco. Não chegou a me levar as lágrimas, como o título  do post, inspirado no título brasileiro de The Glenn Miller Story (Anthony Mann, 1954), pode sugerir. Mas reconheço sua beleza e a delicadeza na escolha da música.

A série, devo dizer, continuou na corda bamba até o fim [da primeira temporada, única que vi]. Gosto de algumas coisas e o episódio depalmiano do parque de diversões é excelente na direção, mas tem um lado sensacionalista que me incomoda bastante, sobretudo porque parece ser a intenção dos criadores mostrar o lado podre de ser adolescente.