Ecrâ 2020

O Ecra foi o primeiro festival online que consegui acompanhar decentemente, já que o de curtas da Kinoforum me desanimou pelas constantes travadas e pela minha incapacidade de encontrar curtas bons e o Fantaspoa aconteceu num período mais tumultuado de minha pandemia (o que significa um dos períodos mais tumultuados da vida, não por excesso de trabalho, mas por falta de plena concentração a não ser para o que seja essencial – no caso, o curso que ministrava no momento). Infelizmente, ter conseguido acompanhar o Ecrã me fez perder, mais por esquecimento e desorganização do que por falta de interesse, o festival de cinema egípcio ou o Semana Semana (mas esse, confesso, não entendi direito).

Alguns longas de força foram exibidos no Ecrã. O grande James Benning estava representado com seu Telemundo, mas é melhor o longa sobre ele, dirigido pela argentina Sofia Brito: 61. A Verdade Interior, no qual a diretora assume sua dificuldade com a língua inglesa, humanizando-se diante da câmera por sua fragilidade na comunicação, e no qual vemos um pouco do processo criativo de Benning, mais organizado por sensações do que pela razão. Telemundo, aliás, trabalha com essa dificuldade de comunicação ao colocar Brito e Benning sentados assistindo a um filme de Arturo Ripstein (O Castelo da Pureza, de 1973). Durante a exibição, eles comentam acontecimentos ou filosofam, mas sempre em sua língua, sem legendas, e sem que o outro entenda o que é falado.

Outro longa que me deixou fascinado é Viagem Fantasma, de Stephen Broomer (mestre do found footage, segundo Michael Pattison). Um trabalho só com sobreposições de imagens amadoras gravadas por Ellwood F. Hoffmann durante os anos 1960. As sobreposições marcam o cinema experimental contemporâneo de um modo interessante. O recurso não é novo, obvimente, mas tem atingido altos níveis nos últimos anos. O longa de Broomer se faz também de sensações e da duração, conforme nos sentimos hipnotizados pelas diversas camadas de imagens que se juntam e pela trilha sonora.

Vale destacar ainda os longas A Forma do que Está por Vir, de Lisa Marie Malloy e J.P. Sniadecki e Cidadefantasma, de Jon Cates. O primeiro lembra Andarilho e Acidente, de Cao Guimarães, e teve a sorte de encontrar um senhor que não é só hippie, mas uma figura sui generis, dessas que seguram um filme desse tipo. Ele se chama Sundog, o que sugere uma aproximação (homenagem? brincadeira?) com o compositor maldito Moondog, falecido em 1999, cuja aparência era bem semelhante a do protagonista desse filme. Cidadefantasma é uma irreverente colagem de westerns com imagens distorcidas, um Tcherkasky menos inspirado, mas ainda mais doido em sua relação com as imagens originais (ainda que sua loucura passe muito por um visual digital um tanto pobre).

Muito elogiados por vários cinéfilos foram É Rocha e Rio, Negro Léo, de Paula Gaitan, e Sertânia, de Geraldo Sarno. O primeiro é mais forte conforme Negro Léo, o músico retratado, genro da diretora (e marido da também música Ava Rocha, sua filha com Glauber Rocha), viaja mais em seus pensamentos e dá vazão a sua sabedoria. A mim, especialmente, pegou forte o que ele fala, ainda no início, da história do sangue português como uma espécie de desistência de nossas raízes brasileiras, ainda que todo colonizador é violento quando numa época em que a violência era praticamente a única maneira conhecida de se subjugar outras nações. A ideia de se combater as más interpretações da Bíblia com os escritos da própria Bíblia em vez de falar que religião é bobagem (mesmo que pensemos ser) como fundamental para a reação da civilização contra a barbárie das armas e do obscurantismo é lapidar. Por outro lado, a pandemia e o surrealismo que invadiu o Brasil neste 2020 deixou algumas falas já anacrônicas. Elas não servem mais para pensarmos o Brasil e uma resistência possível a sua destruição. No mais, o longa de Paula Gaitán, que se assume deliciosamente como um filme-esboço em alguns momentos e tem o inegável mérito de deixar seu entrevistado falar à vontade, no tempo e na energia dele, corrobora aquilo que me disse certa vez o amigo português José Oliveira: a melhor maneira de escapar da fórmula ultra batida do documentário com cabeças falantes, caso não seja de todo possível escapar, é assumir esse formato e ir fundo nele. A diretora foi tão fundo que o filme tem mais de duas horas e meia de duração, plenamente justificada pela capacidade oratória e pela mente sempre questionadora do protagonista.

Sertânia é melhor quando lida com a herança do cinema de cangaceiro no Brasil e pior quando adota uma câmera devedora do pior Alexei German, o de Hard to Be a God, e de um filme muito amado, mas do qual não consigo gostar, que é Vá e Veja, de Elem Klimov. Obviamente é um filme importante, também pela importância de Sarno no cinema brasileiro. Mas estranho a quase unanimidade com que tem sido recebido. Voltarei a ele num futuro post.

Entre os curtas, meus preferidos foram Daltônicos, de Ben Russell, Fratura Exposta Pt.1: A Sonâmbula, de Natália Reis e, principalmente Transparente, o Mundo é, de Yuri Muraoka. O primeiro viaja nas cores e na ambiência de Gauguin, o segundo propõe uma inteligente colagem filtrada pela poesia. São ambos intrigantes e inquietos. Finalmente, o belo Transparente, o Mundo é, que entende a tradição geométrica da imagem cinematográfica japonesa e se insere de algum modo nessa tradição, dialogando ainda com o curta Rito de Amor e Morte (1966), único filme realizado pelo escritor Yukio Mishima, por meio do jogo de representação entre uma mãe, a diretora Yuri, e suas filhas. Vi algo também de Duplo Suicídio em Amijima (1969) e dos filmes posteriores de Masahiro Shinoda (ao menos os dos anos 1970).

O Ecrâ foi uma grata surpresa também por não ter, entre os 21 filmes que consegui ver, um único que eu considerasse fraco. Todos tinham ao menos algo de interessante; mesmo Cavalo, o último de minha lista particular.

Encerro com uma ordem de preferência (como sempre, de curta validade):

Viagem Fantasma

Transparente, O Mundo é

61. A Verdade Interior

A Forma do que Está por Vir

Daltônicos

Fratura Exposta, Pt. 1 “A Sonâmbula

É Rocha e Rio, Negro Léo

Cidadefantasma

Telemundo

A Densa Nuve, o Seio

Assistindo a Dor dos Outros

Homenagem ao Vento

O Documento Giverny (Canal Único)

As Belezas de Garden City

Não Haverá Mais Noite

Sertânia

No Olho do Outro

Sofá

Potência Bruta

Do Observatório eu Vi

Cavalo