Olhar de Cinema 2021: alguns filmes

Um Céu Tão Nublado (Un Cielo Tan Turbio, 2020), de Álvaro F. Pulpeiro

Há algo de Werner Herzog neste documentário ensaístico sobre a Venezuela atual, os mitos e as complexidades de um país alvo de muitas coisas que poucos têm genuíno interesse em saber. Nas filmagens noturnas das plataformas de petróleo ou do cair da noite, com o céu enevoado e o mistério das sombras, lembramos do extraordinário Lições da Escuridão (1992), com os poços queimando na Guerra do Golfo e criando imagens de incrível intensidade e plasticidade.

A beleza do céu e de algumas paisagens, constantes em Um Céu Tão Nublado, não bastariam para criar imagens belas. É necessário envolvê-las na tela, pensar na composição para que elas sejam valorizadas. Uma composição em cinemascope, neste caso, o que facilita por um lado, mas pode dificultar por outro. Nesse sentido, Álvaro F. Pulpeiro revela um bom olhar, inclusive para aquela lição de John Ford: saber onde colocar a linha do horizonte.

Na segunda metade, o filme cai consideravelmente com a longa sequência dos mercadores ilegais de petróleo em suas atividades noturnas (será que é isso mesmo? que coragem de mostrar isso!), incluindo um plano de uma cobra esmagada se contorcendo na areia, que terá seu espelho nas mangueiras usadas pelos mercadores agora depositadas no chão, já sem serventia. A pesquisa em composição volta no fim, e com ela a ideia de grandeza de um país afundado por inúmeros interesses que nos escapam. Mas o filme nos dá uma pista: é tudo pelo petróleo.

O Dia da Posse (2021), de Allan Ribeiro

Um filme de pandemia é também um filme caseiro. Quando a orientação é ficar em casa, o que se pode fazer para continuar filmando é criar um filme dentro de sua própria casa. A maneira de se fazer isso pode resultar em obras modorrentas, mas os cineastas têm conseguido driblar os perigos do filme caseiro, a exemplo do que havia feito Jafar Panahi com Isto Não é um Filme (2016), com uma boa dose de invenção. Assim fez Gabriela Lamas no belo curta Eu Não Sou um Robô (2020), assim tentou fazer Allan Ribeiro neste curioso O Dia da Posse.

A que posse o cineasta se refere? À posse do pior presidente da história ou a posse do corpo de seu namorado? Ou ainda à posse de sua casa, filmada como o lugar da obrigatoriedade, que deve ser aceita como tal e tornada o melhor lugar possível para uma vivência. Mais para o fim, a ideia de posse como vitória surge, mas também uma menção à posse nos EUA. De Joe Biden? Não importa. A ideia da vitória é a que fica.

Ribeiro descobre em seu companheiro Brendo um ator realmente carismático, capaz de ser jornalista cultural, além de médico e advogado, candidato a uma vaga em reality show e um legítimo manifestante contra a proximidade da câmera, mas também candidato a presidente com votação recorde nas eleições de 2030. Um homem cheio de facetas que o diretor explora com alguma habilidade, evitando como pode os momentos repetitivos que um filme pandêmico poderia suscitar.

O Bom Cinema (2020), de Eugênio Puppo

Fazer cinema de colagem é relativamente fácil. O difícil é fazer um filme de colagem que seja especial, como Tudo é Brasil, de Rogério Sganzerla. Mais fácil é cair num tipo de arbitrariedade que parece uma compilação feita com vídeos do Youtube (como Ato, Atalho e Vento, de Marcelo Masagão, ou Caro Francis, de Nelson Hoineff).

O Bom Cinema está bem no meio, no sentido de ser um filme habilmente costurado em cima de algumas facilidades. A costura não é novidade para quem viu o filme de Puppo sobre Ozualdo Candeias. As facilidades estão no fato de que Puppo se aproveita das imagens, por vezes de longos momentos colocados sem pudor algum, cujas restaurações ele mesmo promoveu (num trabalho louvável, aliás), de dois filmes antigos do chamado “cinema de invenção”, denominação tão vaga e imprecisa quanto a de “cinema marginal”, sem a vantagem do caráter rebelde desta última. Esses filmes são Audácia e As Libertinas, exibidos na versão online da Mostra de Gostoso de 2020, realizada apenas em 2021.

Puppo é esperto o suficiente para inserir uma aula de sensibilidade poética do saudoso Carlos Reichenbach, em off ou em quadro para algum programa que não está identificado, além de outras imagens de arquivo que enriquecem a colagem contrapondo os filmes rebeldes a imagens do primeiro cinema, reportagens e imagens de arquivo como a que mostra o sinal de Hollywoodland em 1923. Interessante, por exemplo, que Reichenbach tivesse consciência da exclusão de dois importantes cineastas paulistas da turma do cinema novo: Roberto Santos e Luís Sérgio Person. Poderia ter incluído o Walter Hugo Khouri. Importante essa consciência de que São Paulo não era bem-vinda no círculo dos que faziam cinema no Rio, com o agregado estratégico e aglutinador político, o baiano Glauber Rocha, incentivando a todos. Era importante ter Glauber, mas não era tão importante ter Santos e Person, embora Santos tenha sido bem próximo do movimento até A Hora e a Vez de Augusto Matraga (lembrado por Carlão). O Bandido da Luz Vermelha e As Libertinas, segundo ele, são os filmes importantes para quebrar essa hegemonia do cinema novo, perdido num hermetismo sem fim naquele momento (1968). Esqueceu de A Margem, de Candeias. Mas tudo bem. Ouvir e ver o Carlão é um deleite para qualquer cinéfilo.

Zinder (2020), de Aïcha Macky

Numa cidade de Niger, próxima da fronteira com a Nigéria, está um bairro chamado Kara Kara, habitado pelos marginalizados da sociedade. Nesse bairro desenvolve-se a gangue de Itleur (corruptela de Hitler), cujo líder anda numa moto tendo na garupa um outro homem segurando uma bandeira com a suástica. O símbolo é usado apenas como instrumento do medo, já que não há uma associação ideológica entre a gangue e o nazismo. Para nós, brasileiros, com todos os sinais nazistas que temos aturado em nossa sociedade e, principalmente, no governo, pode ser aterrorizante ver essas imagens. Mas elas nos inserem no centro de uma comunidade em que a imposição pelo medo e pelo senso de liderança deve acontecer para que haja algum respeito mútuo. De algum modo, a comunidade funciona com essas estratégias, sobrevive-se aos solavancos ali, mas sobrevive-se, e a diretora não está ali para criticá-la, mas para observá-la e compreendê-la.

A Cidade dos Abismos (2020) de Priscyla Bettim e Renato Coelho

Por algum motivo, troco o nome deste filme por A Cidade das Ilusões. Não por me lembrar do filme de John Huston (Fat City, 1972), mas porque talvez também fosse um nome apropriado, embora A Cidade dos Abismos seja mais forte e poético.

Uma trama policial narrada como um filme experimental, mas um filme cheio de ideias. Nem sempre elas encontram uma melhor materialização em imagens, mas quando encontram geram momentos belíssimos. Tenho dúvida, aliás, se os momentos experimentais em preto e branco não prejudicam um pouco o filme, que é quase sempre mais forte quando nos mostra uma encenação rigorosa, as personagens em contato umas com as outras, a luz indicando o descaminho da desolação e da falta de horizontes.

Rio Doce (2021), de Fellipe Fernandes

Aqui temos um episódio mediano de uma telenovela que até pode ser interessante, mas jamais saberemos. Por quê? Porque é um filme, não o episódio de uma telenovela; é pensado para ser exibido numa tela de cinema, não em um aparelho de televisão – ainda que hoje os meios de se ver filmes tenham se diversificado bastante e não é difícil alguém ver melhor um filme na tv do que numa tela de cinema, dependendo da qualidade da TV e da projeção da sala de cinema. E o que há neste filme de expressivamente cinematográfico? Um ou outro plano móvel no Recife, um ou outro achado de decupagem, pouco além disso. Outro dia um amigo me confidenciou, a respeito do argentino Estilhaços, que considera o formato “imagens encontradas e montadas com viés familiar” já esgotado, mas penso que o que se esgotou é esse naturalismo como força única de um filme, ou pelo menos como um motor, com todo o drama precisando se desenvolver dentro dele ou a partir dele. Um naturalismo que já não é mais próprio do cinema, mas também da televisão, conforme as duas linguagens se aproximaram neste século. Tem sido bem difícil encontrar bons filmes nesse registro, e Rio Doce não é uma exceção. Não é nem que o filme seja ruim. Ele só não me desperta qualquer emoção. É quase como se eu nem o tivesse visto. Passou por mim sem sequer deixar uma dúvida.