44ª Mostra Internacional de São Paulo – Parte 3

Mamãe Mamãe Mamãe, de Sol Berruezo Pichon-Rivière

Crianças pulam, saias ao vento, colares. Um pequeno corpo na piscina. O que aconteceu com a boia? Uma mãe desesperada, uma TV desligada, a mesa posta. Como filmar uma tragédia familiar? Como filmar o luto, a superação? Crianças vivem numa casa grande com piscina e vegetação. São todas meninas. Filme de mulheres, maduras, avós, mães, adolescentes, infantis, com idades que diferem bastante apesar da pequena distância numeral – porque entre 6 e 10 anos, 10, 11 e 12, ou 12 e 15 (idades das garotas que vemos em cena) já são mundos bem diferentes a serem explorados.

Enquadramentos calculadamente imperfeitos. A esta altura, o cálculo, se não é demasiado (e não é aqui), torna-se bem-vindo em meio ao monte de câmeras incertas e fluxos vazios que este filme também tem, mas em número discreto e como recursos pontuais. O filme de Pichon-Rivière marca um retorno (que me pareceu consciente) ao cinema que Lucrecia Martel realizou com O Pântano (2001) e Menina Santa (2004), seus melhores filmes. Ou seja, o da procura por recortes (nos enquadramentos e na dramatização) que nos informam de um todo de maneira lúdica.

É um filme curto, com pouco mais de uma hora, em que primas estão apartadas do sofrimento de mãe e tia, em que as imagens do passado surgem como lembranças que trazem de volta uma vida, em que as brincadeiras tornam-se suspensas no tempo pela suspeita de culpa e pelo não entendimento de um caminho possível fora do silêncio ou da tentativa de isolamento (estratégia dificultada pelo medo da menstruação). O começo é muito forte, pelo acidente e pela direção. Depois o filme vai se tornando um pouco mais comum, mas jamais desinteressante, e com toques de inesperada poesia na relação entre as meninas.

Por mais que seja golpe fácil fazer um filme centrado nas reações das crianças, há ainda a necessidade de uma boa direção para dar conta das possibilidades em cena. Quando Martel realizou seu primeiro longa, Pichon-Rivière, nascida em 1996, era uma menina de quatro para cinco anos. Mamãe Mamãe Mamãe é seu primeiro longa, quase vinte anos após o de Martel. O cinema argentino quase se renova com o sopro da poesia e da infância, pelas mãos de uma jovem e talentosa diretora, mais uma vez.

A Morte do Cinema e do Meu Pai Também, de Dani Rosenberg

Nome tão pomposo para filme tão simples, por vezes simplório. Filmar o pai, filmar a casa, o hospital. Filmar a história em curso, e sabe-se lá mais o quê. Como o pai está morrendo, não pode mais haver filme. Mesmo assim, há um filme que fala da impossibilidade de haver um filme. A morte do cinema já foi tematizada em obras melhores. Aqui, raramente alcança algo além do trivial. Um ou outro plano interessante em meio a uma série de imagens de família, muitas delas desprovidas de qualquer pensamento ou olhar, algumas poucas engenhosas (como quando o pai do diretor é visto no monitor enquanto uma trilha é tocada no estúdio por uma banda revelada pelo movimento da câmera). As cenas de agonia do pai são tão mais cruéis porque filmadas de um modo cruel, com o pai e com o cinema.

A Pastora e as Sete Canções, de Pushpendra Singh

De repente, me senti numa Mostra SP dos anos 1990, em uma sessão vespertina do Cinesesc ou do Cinearte, tendo contato com uma cultura distante e uma cinematografia aplicada. Todos os anos a Mostra nos oferecia filmes assim, alguns bons, eventualmente muito bons, outros tantos descartáveis. Este, felizmente, vai ficar. As cores e os enquadramentos remetem aos anos 1990, mas a força da protagonista, a pastora Laila, nos traz de volta ao século 21.

Há um desencadeamento inteligente das situações que procuram aprisionar Laila à posição de mulher submissa, tendo ao menos três homens em sua órbita, nem sempre com as melhores intenções. Mas ela protesta por meio das canções, que nem sempre estão de acordo com o que se espera dela (“você está grávida, cante uma canção de esperança”).

Muito se fala de Isso Não é um Enterro, É uma Ressurreição, mas este A Pastora e as Sete Canções é claramente superior, andando por caminhos semelhantes. Ambos falam de costumes arcaicos e da vida rural. Em ambos as mulheres lutam contra imposições masculinas. Finalmente, nos dois longas a protagonista termina se desnudando como forma de enfrentamento. No primeiro, contra as autoridades locais. No segundo, contra o próprio futuro que parece imposto a Laila. Que só o primeiro esteja recebendo loas é um dos mistérios do circuito de festivais.

Prazer, Camaradas!, de José Filipe Costa

Em 1975, Portugal passava por intensas transformações e uma esperança de que a Revolução dos Cravos desse muitos frutos, não sem uma série de tropeços e certo caos. Muitas cooperativas surgiram no sul e no centro de Portugal, por vezes com a ideia de alfabetizar a população. Também no cinema houve formação de cooperativas, e muitos filmes etnográficos e ensaísticos procuravam dar a conhecer esse Portugal que ninguém mostrava. Chama a atenção, em Nós Por Cá Todos Bem, filmaço de Fernando Lopes realizado entre 1975 e 1976, um muro com os dizeres: “O 25 de abril não chegou aqui”. Era um sinal crítico de que a revolução ficou mesmo por Lisboa e o resto do país continuava atrasado. O filme de Lopes, por sinal, tem uma similaridade com este Prazer, Camaradas!, de José Filipe Costa: em ambos a música tem uma boa parcela de importância. Ali, Sérgio Godinho. Aqui, José Afonso e Sylvester.

A proposta de José Filipe Costa é captar o momento em que portugueses de fora do país e estrangeiros foram a Portugal para participar de uma cooperativa educacional em Aveiras de Cima, freguesia de Azambuja, município próximo a Lisboa. O mais forte é o humor, que vem sobretudo das diferenças de costumes e das observações cotidianas como a maneira dos homens de sentar nas bicicletas. Alemães e ingleses, de costumes mais avançados, se deparam com o machismo rural português. As cenas com as mulheres são hilárias, já no começo, na alfabetização e nas orientações para lavar a louça. E logo elas irão se rebelar: “como só nós trabalhamos e os homens comem e dormem?”. Em entrevista para Jorge Mourinha, o diretor, que tem estudos acadêmicos sobre o cinema desse período de Portugal, conta que muitos dos atores não profissionais que estão no filme são os mesmos que na época foram a Aveiras de Cima. O lance de eles reviverem, hoje, as situações que viveram na época é um de seus grandes achados. Um faz-de-conta com a consciência da experiência já vivida, lembra Filipe Costa.

Observação pessoal: “Caluda! Caluda”, dizia sempre meu avô, nativo de Arrifana, freguesia da Guarda. É o que diz um personagem durante uma reunião que sai do controle. Não costumo ver esse chamado ao silêncio em filmes portugueses. Tanto que até pensava que pudesse ser um dialeto de Arrifana. Penso que o filme fale muito aos portugueses até por mostrar essas raízes rurais de um país hoje já muito diferente. 

Vencidos da Vida, de Rodrigo Areias

Um homem cuida de um cinema. Os filmes que ele passa variam: um homem se envolve com uma mulher misteriosa que nada num lago, um anão e suas inseguranças ao trabalhar num circo, um fotógrafo desenvolve uma relação sexual violenta com sua modelo. O desejo de experimentar é sempre saudável. Mas por vezes, muitas vezes, não dá em nada interessante. É o caso deste novo longa do português Rodrigo Areias, cineasta que se sai um pouco melhor quando se aproxima do realismo, como no seu longa anterior de ficção, Surdina.

Walden, de Bojena Harackova

Narrativa em dois tempos sobre Jana, que deixou o país e volta depois de muitos anos para se conectar a algo mal resolvido do passado. Um lago está no centro de suas angústias, como também um namorado envolvido em pequenos crimes. Alguns diálogos são ridículos e a parte mais atual não tem força alguma. Unindo essas duas falhas está o terrível diálogo de Jana com o polonês num bar, já perto do final (pior ainda porque há um desperdício de Fabienne Babe, atriz que faz Jana mais velha e é uma das mais marcantes do cinema francês). A liberdade nas sequências de juventude, com os brilhos nos olhares e os encontros entre os amigos, tem algo de interessante, e os conflitos entre pais e filhos rendem algumas boas cenas também. De alguma forma nos sentimos atraídos pelo desenrolar da narrativa, mas o filme nunca chega a empolgar, permanecendo sempre perto do limite do descartável. Há uma participação como ator do cineasta lituano Sharunas Bartas.

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