Revendo o filme da Leni Riefenstahl após quase 30 anos, me levo a pensar, logo no início, no lado b das imagens: as janelas que não têm o símbolo nazista pendurado, as pessoas que não foram receber Hitler em Nuremberg, todas as pessoas que estavam prestes a sair da Alemanha (ou já tinham saído) por causa do autoritarismo. Ousaria dizer que esse lado b é uma ausência presente, mas não propositalmente. Sabe-se que Riefenstahl só iria se declarar arrependida muito mais tarde, e mesmo que desconfiasse daquela breguice triunfalista, não parece colocar em suas próprias imagens algum traço de ambiguidade. Lembro sempre das brilhantes palavras de Robin Wood sobre a nocividade de um crítico recusar uma obra porque não se casa com sua ideologia, mas que, ao mesmo tempo, obras que servem a uma posição totalitária não contêm dentro de si ambiguidades (ou ao menos a dúvida sobre o ponto de vista) que as enriqueceriam. E ambiguidade é o que falta às imagens da diretora.
Nos momentos em que é possível salvar algumas delas da propaganda política que domina o filme, vemos algo parecido com as sinfonias de cidade que foram feitas no final dos anos 1920 e início dos 30. Neste caso, uma sinfonia de Nuremberg, seu ritmo, as águas do Danúbio refletindo as casas e apartamentos, os acampamentos dos jovens, a música cotidiana de uma bela cidade medieval. Contudo, o símbolo nazista está por toda parte, para nos lembrar do mal absoluto e nos fazer corar de vergonha de ver a história se repetir.
Ao mesmo tempo, não creio ser possível comparar o povo aceitando Hitler em 1935 com o povo que aceita o horror de hoje. Naquela época já existiam fake news, mas os meios de se lutar contra elas eram menos eficazes. Existia censura vinda de cima e forte apoio de industriais, como hoje, mas aquelas pessoas tinham menos meios de saber a verdade e o que viria pela frente do que as pessoas de hoje. Logo, hoje é mais grave a promiscuidade de empresários com a extrema direita e a aceitação por parte da população de um governo genocida.
Portanto, fiquemos com o filme de 1935, com as imagens de Riefenstahl que, observando bem, não são tão extraordinárias quanto as de Walter Ruttman em Berlim – Sinfonia da Metrópole (1927) e Sinfonia do Mundo (1929). Ou as de Leitão de Barros em Lisboa, Crónica Anedótica (1930). Certamente há imagens belas, mas após um tempo elas ficam sufocadas pela insistente música marcial e terminam por cansar ao mostrar sempre a mesma coisa: a população feliz amando Hitler como se estivesse diante de um deus ou a coreografia das tropas em planos abertos que se repetem à exaustão (um looping da lobotomização de guerra). E se o filme não é tão forte formalmente quanto tem sido dito desde aquele momento e ainda hoje – e realmente não é – nem é o caso de invocar, para o defender, a formulação de Adorno para a arte de Richard Wagner, que reproduzo aqui:
“O antissemitismo de Wagner contém todos os ingredientes do que viria depois. Mas dentro da esfera sombria de influência de seu reacionarismo estão gravadas as letras em que suas obras triunfaram sobre seu caráter.”
O caráter de Riefenstahl talvez não fosse tão obtuso quanto o de Wagner, mas O Triunfo da Vontade nem pode ser tão defendido assim em termos unicamente formalistas. Até porque o mérito que poderia existir nas inúmeras cenas de marchas seria da disciplina dos soldados, mais do que da câmera ou de supostas técnicas inovadoras que se tenha apregoado. A câmera e o restante do aparato cinematográfico não fazem mais do que Murnau ou Lang faziam na década anterior para filmar gente de verdade ou mesmo robôs como os que Riefenstahl filma, no caso da desumanizada Metropolis. Ou alguns filmes soviéticos, para o desespero dos neo-nazis. Há coisas melhores para se defender. Até mesmo Olimpia. Ou, mais livremente, A Luz Azul, que a memória me diz ser um filme belíssimo.