Quando vi A Lenda da Flauta Mágica pela primeira vez, se não me engano com um outro título (O Flautista de Hamelin, talvez, que é como a lenda e o conto são conhecidos no Brasil), provavelmente numa tarde na Bandeirantes, estava em início de cinefilia e não conhecia nada ainda de Jacques Demy. Pouco dessa visão resistiu na memória, mas ao menos uma cena foi inesquecível para mim: Donovan tocando sua flauta e uma massa uniforme de ratos indo atrás dele. Eu já sabia bem quem era Donovan, e conhecia a lenda de Hamelin que se tornou fábula nas mãos de escritores como os irmãos Grimm e Robert Browning, com citações em diversos lugares, incluindo gibis de Walt Disney. Conhecia também Jack Wild, o jovem ator com cara de moleque que já havia brilhado em Melody – Quando Brota o Amor, filme de Waris Husseim produzido pelo mesmo David Puttnam. Wild faz um jovem artista promissor em A Lenda da Flauta Mágica, e seu destino no filme é de imensa importância (o humanismo precisava fugir da barbárie do feudalismo, com suas queimações de pessoas em praças públicas e a dominação do clero, para ajudar a florescer a Renascença).
O filme era inglês, percebi. E se passava na Alemanha. Mas seu realizador não era Jack Demy, ou Joachim Demy, mas Jacques Demy. No início de cinefilia, eu atentava para essa discrepância: “como um filme passado na Alemanha e dirigido por um francês poderia ser dialogado em inglês?”. E no entanto, uma outra lembrança que tenho é que tudo isso se tornou secundário diante da poesia que eu via pela frente, ainda sem saber ao certo o que seria uma poesia cinematográfica e sem entender porque a câmera se mexia tanto.
Quase trinta anos depois, revejo o filme para um texto do catálogo editado para a mostra Jacques Demy e me espanto em ver que cada movimento de câmera é muito bem pensado e executado, e cada momento poético surge naturalmente, de uma estrutura que o possibilita, e não colocado à fórceps para conquistar pessoas que se esbaldam com qualquer tipo de poesia. A emoção, igualmente, surge do acúmulo de situações dramáticas movidas pela observação humana, do cuidado iconográfico, de uma respeitosa e cinematograficamente realista representação da Idade Média. Digo cinematograficamente porque tudo que temos de imagens da época nos levam a possibilidades diversas, como se fosse uma outra dimensão, não só uma outra época.
Não é preciso conhecer a lenda ou o conto. Também não é preciso conhecer Donovan, seus talentos de trovador, suas melodias e a voz celestial. Tampouco Jacques Demy, com seus movimentos de câmera herdados de Vincente Minnelli e dos musicais da Metro, exige do espectador que se depara com qualquer um de seus filmes um conhecimento prévio de suas obsessões. Sua grande força é a fruição.