American Fiction

John Ford detestava Boston. Tinha a ver com ser uma cidade preconceituosa, reacionária. Ele, irlandês que sempre sofreu preconceito, ficava sensibilizado com qualquer outro tipo de preconceito, e logo ele seria chamado de racista por quem não entende representação sem tomada de lados (uma constante em diretores que observavam o mundo criticamente, com a complexidade que merece).

Ainda no começo de American Fiction, em Boston, Jeffrey Wright, aliás, Monk, vê um taxi o ignorar para pegar um outro homem, branco, poucos metros depois. Ele sofre racismo todos os dias, está consciente disso, mas não concorda com alguns meios de se combater o racismo. Acha, por exemplo, que jogar o jogo dos brancos é terrível e não quer fazer o que os brancos esperam de um escritor negro.

O filme vai muito bem enquanto Monk observa a falsidade e o oportunismo ao seu redor, a tentativa de o encaixar em literatura sobre estudos afro-americanos, o que ele rejeita, e a estupidez das editoras, que se curvam ao gosto dos leitores e os rebaixam ainda mais. Quando pega todos os seus livros numa grande livraria e os troca para a seção de ficção, está só sendo infantil, embora tenha sua razão. Não é a melhor maneira de corrigir essas coisas.

Não gosto do momento em que Monk começa a escrever seu novo livro e seus personagens se materializam na sua frente (ainda bem que a ideia é abandonada logo). A outra esperteza da direção me agrada mais: as reviravoltas finais do filme dentro do filme.

O livro que ele escreve para mostrar o ridículo das editoras acaba possibilitando o maior contrato de sua vida, numa espécie de Hollywood Ending mais verossímil, mesmo com os prolongamentos da piada do livro ruim que vende (dentro da lógica do filme, por que ele achava que a piada jamais seria aceita para publicação?), e as conversas telefônicas com a editora que se encantou é um pequeno show de Wright (ouvimos o “motherfucker” dele após o corte para a editora na primeira ligação). Algumas conversas lembram a de Nanni Moretti em seu último filme com o pessoal da Netflix. E o encontro dos jurados da premiação demonstra a hipocrisia de brancos progressistas (“as vozes negras precisam ser ouvidas”, mas não quando estão próximas de nós e são contrárias ao que defendemos na reunião, poderia ser acrescentado à fala de uma avaliadora branca). Por mais que Monk tente, as vidas negras sempre serão narradas para os brancos, com todos os clichês embutidos na ideia (mortos pela polícia, rappers, drogados, cheios de gírias).

As cenas com a mãe que sofre de Alzheimer me pareceram bem dignas, sem apelação ou comédia. Conforme a doença progride, torna-se tocante, mas entendo que tenha muito da minha experiência pessoal com o sofrimento de minha mãe aí, então desconto esse sentimento no julgamento do todo (tentando ser crítico, entendo essas sequências como corretas, o que já é alguma coisa).

A sociopatia do personagem precisa ser esticada para o filme prosseguir. O exagero e o auto boicote constante acabam cansando, mesmo que Wright segure o personagem. No todo, um filme bem interessante (as comparações dos parágrafos anteriores atestam isso, e ainda há uma clara citação a De Palma no final). Não entendo a fraca recepção que o filme vem tendo por aqui.