Breves impressões sobre Twin Peaks 3

dougie

Parece que Twin Peaks – The Return foi feito para ser amado loucamente ou odiado sem misericórdia. Pois mais uma vez acontece de eu estar no meio do caminho, como Clint Eastwood em Por Um Punhado de Dólares. Pode ser excesso ou falta de razão. Se for excesso, siginifica que não aprendi nada com a vida. Se for falta, o remédio foi superdosado. A verdade é que nas quase 18 horas desse mastodonte alucinado encontrei coisas boas e ruins em medidas semelhantes. As ruins tornam a visão um tanto sofrível. As boas fazem com que a série cresça na memória. Ou seja: gosto, com muitas ressalvas, e poderia ficar sem ela tranquilamente.

O que faz mesmo valer ter visto todos os 18 episódios desse retorno é Kyle MacLachlan. Sua tripla (ou quádrupla) interpretação é disparado a melhor coisa desse retorno. Seja como Dougie, que começa como um bobalhão e vira catatônico após sair de uma… er… tomada (?), ou como Dale Copper do mal, para não mencionar a persona já firmada do Dale Cooper herói, que pode se dar ao luxo de desaparecer durante quase toda a série e no ressurgimento dizer um “I am the FBI” sem soar ridículo, a interpretação de MacLachlan, já muito elogiada, revela um alcance de registros que ele nunca havia demonstrado em seu trabalho anterior, nem mesmo no primeiro Twin Peaks, em Veludo Azul ou em Showgirls. Perto de MacLachlan como força vital da série está o próprio David Lynch como Gordon Cole, o superior de Cooper. Em sua divertida surdez, que faz com que ele fale sempre alto, num inglês muito bem procunciado e com frases de um carismático nonsense (“Apologies in advance for Albert”), ele sempre consegue provocar um sorriso quando aparece.

Apesar dessas duas figuras, confesso não entender a lacração toda que meus amigos imputam a esse retorno. Em parte porque durante boa parte me pareceu o Lynch entregando exatamente o que se espera dele. Nesse sentido, acho que qualquer fanboy minimamente aplicado poderia fazer algo semelhante, bastando apenas estudar direitinho sua carreira, seus escritos, as gravuras, seu lado artista plástico, as duplicidades hitchcockianas já presentes em seus filmes mais festejados, o modo como ele usa o som, fator essencial para a criação da atmosfera de constante tensão. Entregar mais do mesmo não é necessariamente um problema (que o digam Howard Hawks, Tsai Ming Liang e Hon Sang Soo, por exemplo). Sabemos que esse mais do mesmo pode ter também algo diferente, como disse João Bénard da Costa a respeito do hawksiano John Carpenter em Fuga de Los Angeles, e sobre Hitchcock e Hawks (“sendo sempre o mesmo, de cada vez era tudo novo“). E no mesmo texto alertava: “É que a repetição só é fastidiosa quando a primeira vez já o era”. Não chego a tanto. Mas poderia dizer que algumas repetições tornam fastidiosa a ideia inicial. É o que acontece com David Lynch após seu maior filme, Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr.), ainda que Twin Peaks 3 seja claramente superior a Inland Empire.

Tirando a maior parte do episódio 8 (que ainda assim não acho que seja a melhor coisa de horror dos últimos anos, como disse o Leandro Caraça), uma frase genial do ep.9 e algumas coisas espalhadas pelos seis últimos episódios, não há muito mais na série que justifique essa festa toda. A maior parte do que se passa na pequena Twin Peaks nunca chega a me interessar. Em Nova York não vi muita coisa também. O chefe Hawk é um chato. A mulher do tronco também. O velho da pá e dos óculos de terceira dimensão é um chato de galochas. Quase sempre que vai para aquela outra dimensão me dá vontade de apertar o FF. Algumas coisas ali parecem de crianças brincando de filme. Nesses momentos lembro de coisas como Fire Walks With Me ou Inland Empire, ou seja, das piores coisas que o Lynch fez. Acho terríveis também os dois loiros problemáticos. Aquele valentão (Eamon Farren) que, se não papei mosca, é visto primeiramente no bar, cantando uma moça de forma asquerosa, é um personagem idiota que não faria falta. Parece existir só para nos deixar com ódio, à espera do momento em que ele terá uma morte drástica. E o doidão suicida vivido por Caleb Landry Jones, namorado da garota vivida por Amanda Seyfried, é um porre, desses que nos faz pensar em como é importante o controle de natalidade (o ator não ajuda, devo dizer). O flerte de Norma com o marido da cortineira é interessante, mas solucionado bruscamente (como outras micro-soluções que se apresentam e que parecem concessões para a coisa ficar um pouco mais palatável). E as piscadelas para os fãs da série antiga quase sempre me soam bobas, jogadinhas para conquistar quem já estava conquistado de saída. Muitos personagens parecem criados para encher a duração, o que resulta em irregularidade nos múltiplos dramas que se desenvolvem.

Mas tem coisas boas, como eu dizia. Quando Dougie se torna amigão dos irmãos Mitchum, a série cresce. Dougie já era um personagem carismático (o catatônico, não o que aparece brevemente com a prostituta), sobretudo pela interpretação de MacLachlan, que o engrandece. Ele também provoca o crescimento dos irmãos Mitchum, que de gangsters anódinos, donos de cassino, transformam-se em figuraças dignas de John Landis (graças a James Belushi e Robert Knepper, hilários). As caras e bocas da assistente de Gordon Cole são ótimas, assim como o seu andar rebolado, que desconcerta os agentes (Gordon e Albert). Se os momentos loucos são geralmente piloto automático de lynchices, quando ele se apruma e tenta fazer algo mais experimental o interesse aumenta. Lynch parece se sair melhor quando se solta da redoma que seus fãs impuseram, ou seja, quando é mais doido do que os fãs podem suportar ou imaginar (por esse motivo o oitavo episódio é mesmo um marco da série, no sentido de que vi gente odiando e gente caindo de joelhos por ele). Nesses momentos, Twin Peaks ameaça atingir algo maior do que suas pernas aguentam.

Porque não se trata de rejeitar a tal lógica do pesadelo que Lynch assume. Lógica do pesadelo levada às telas com mais invenção e loucura, ou seja, muito mais como um pesadelo de fato, quem fez maravilhosamente bem foi Fassbinder, no genial epílogo de duas horas de seu Berlim Alexanderplatz. Perto das imagens embasbacantes nas quais Franz Biberkopf é inserido, Lynch é um guardião do folhetim (por sinal, há muito de folhetim em Twin Peaks, o que não quer dizer algo negativo necessariamente). Ele próprio já havia levado a lógica do pesadelo com mais sucesso em Lost Highway e Mulholland Drive. Suas inspirações aqui parecem bem mais  ecléticas: de Hitchcock (a duplicidade, os signos tirados dos filmes do mestre) a Jerry Zucker (aqueles maltrapilhos que surgem do chão para ressuscitar o mal Dale Cooper remetem a Ghost), passando por Sam Raimi (via Arrasta-me Para o Inferno), Takashi Miike (a violência inusitada e gosmenta em filmes como Gozu e Ichi the Killer), Robert Aldrich (a explosão, como em Kiss me Deadly), John Landis (a generosa porção de humor que há no filme, mesmo no terror – lembrando que ambos estrearam em longas na mesma época) e Franz Kafka (um fantasma em toda a série, com retrato no escritório de Gordon Cole).

Não se trata também de procurar explicações para o que se passa na tela. Explicações, na maioria das vezes, estragam tudo. As explicações para Twin Peaks dificilmente transformam a série numa coisa melhor. Por isso os maníacos que gostam de tudo explicar fazem mais um desserviço. A cada vez que eu sentia que entendia 2001 o filme automaticamente se enfraquecia para mim. Sorte que Kubrick é inteligente o suficiente para deixar todos mergulhados em dúvidas, mesmo quando aparentes certezas surgem elas logo evaporam. O enigma é sempre mais forte, quando bem engendrado. Lynch sabe disso, como já demonstrou algumas vezes em sua carreira. Em Twin Peaks 3, entendo que ele foi só parcialmente bem sucedido.

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