O cinema pouco visto de José Rubens Siqueira

Diretor associado ao chamado cinema marginal, e mais ainda à cena teatral dos anos 1960 e 70, o paulista José Rubens Siqueira, nascido em Sorocaba, realizou apenas um longa, além de diversos curtas, todos lamentavelmente desconhecidos do cinéfilo brasileiro. Só Em Cada Coração um Punhal, de 1970, filme de três episódios dirigidos por Siqueira, Sebastião de Souza e João Batista de Andrade, teve alguma circulação em mostras e cineclubes. O cineasta não aparece no antigo livro História do Cinema Brasileiro, de Fernão Ramos (na edição recente, atualizada por Ramos e Sheila Schvarzman, não consegui encontrar porque não tem índice de nomes ou filmes citados). Também não consta na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, de Ramos e Luis Felipe Miranda (ao menos na edição que tenho), o que dá uma medida de seu esquecimento. Talvez ele seja mais conhecido como tradutor de livros importantes, muitos da Companhia das Letras, por exemplo.

A mostra que começa nesta quinta-feira, 20/03, na Cinemateca Brasileira, indo até o próximo domingo, é uma boa desculpa para conhecermos melhor o seu trabalho no cinema. É também uma homenagem ao cineasta, que faleceu em 17 de fevereiro deste ano, aos 79 anos.

Não quero contribuir para a marginalização do formato curta-metragem, mas também não posso deixar de observar que o grande filé da mostra é o único longa realizado por Zé Rubens (como ele era conhecido pelos povos de teatro e de cinema), Amor e Medo (1974), filme estrelado por José Wilker e Irene Stefania (os dois na foto que ilustra o post) que começa com um trecho do poema homônimo do escritor romântico Casimiro de Abreu (1839-1860). Em curtas, temos alguma ideia das obsessões de quem dirigiu. Em longas, essas obsessões precisam ser estruturadas de alguma forma, mesmo que seja de forma bem livre, como a que Siqueira parecia perseguir. Por isso o longa tem peso maior no entendimento do que foi sua carreira cinematográfico.

Isso não quer dizer que os curtas sejam pouco valiosos. Pelo contrário. Eles dão uma amostra do que estaria por vir ou do que poderia ser feito, caso Siqueira filmasse mais longas. E são curtas, na maioria, bem curtos, que podem ser apreciados numa tacada só. Atenção: Perigo (1967), seu terceiro curta e o primeiro que podemos ver, marca a estreia de Sonia Braga no cinema. Ocorrência 642/67, o curta seguinte, parece ter sido o estopim para algum interesse num circuito alternativo, segundo o próprio Siqueira menciona, por meio de seu alter ego José Wilker em Amor e Medo. Pequena História do Mundo (1974) é igualmente imperdível, da série de colagens de meados dos anos 1970. Outro destaque pode ir para Hamlet (1975), um dos preferidos da cinefilia mais antenada, pois já estava disponível há algum tempo no YouTube. Por fim, vale ver Close Up (1975), que arrisca um caminho bem distinto.

Aqui vão breves comentários sobre cada filme da mostra.

Atenção: Perigo (1967)

Jovens brincando, descobrindo coisas e se amando na natureza, próximo ao mar. Dá para ver de que modo uma linha evolutiva sai de Limite (1931), de Mário Peixoto, e chega neste curta de Siqueira, cheio de experimentos e vontade de inovar. É reputadamente o primeiro filme de Sônia Braga, o que já lhe confere um interesse e tanto. Imaginem, começar neste curta, explodir no cinema brasileiro e na televisão durante os anos 1970 e, na maturidade, filmar Rookie, de Clint Eastwood. Nessas linhas do tempo, o cinema se mostra uma arte de história imprevisível.

Ocorrência 642/67 (1967)

Amor, ciúme e crime. Um filme mais urgente e menos onírico que Atenção: Perigo, quase uma simulação de um caso policial. Aqui já se vê um querer mais definido, uma proposta pensada de cinema.

Semana da Arte Moderna (1968)

A esta altura já deu para perceber que José Rubens Siqueira não é muito bom com títulos. Este curta de dez minutos tem fotografia em cores de Jorge Bodanzky. É um passeio importante por obras e artistas do modernismo brasileiro da semana de 22. Mas é meio institucional, apesar de bem feito e, em última instância, bonito de se ver.

Clepsuzana (ep. de Em Cada Coração um Punhal, 1970)

Se bem me lembro e se o letterboxd estiver certo, este é o segundo episódio de Em Cada Coração um Punhal. Quando o vi, salvo engano na mostra de cinema marginal que o Eugenio Puppo promoveu no CCBB, em 2001, achei o mais fraco dos três (e o de Sebastião Souza o melhor). Revendo hoje, suas qualidades me pareceram mais evidentes.   

A jornada de uma cleptomaníaca filmada com grande influência da nouvelle vague e um humor muitas vezes involuntário, como na cena em que ela rouba o isqueiro de um homem no bar e um terceiro testemunha e tenta avisar. Estamos no terreno da precariedade, o que costuma deixar o cinema brasileiro num rumo mais inventivo, por vezes fascinante. Seria tolo, contudo, diminuir o filme por seus diálogos fracos (na verdade, estereotipados da relação homem-mulher da época) e pela dublagem deficiente.

A graça do filme é o inusitado de mostrar, por exemplo, o fim de um relacionamento metaforizado em explosões numa série televisiva que a protagonista vê no momento. Ou o impulso que a leva a descer do carro e roubar uma estátua da entrada de uma casa.

Emprise (1970)

Curta de cinco minutos em que a inscrição Eros é Tanatos surge em várias línguas. Na maior parte, o curta é uma animação com evidente teor político.

Amor e Medo (1974)

Único longa de José Rubens Siqueira, Amor e Medo foi rodado majoritariamente em Matão, no interior de São Paulo, com um José Wilker cabeludo e cineasta e uma Irene Stefania professora e pintora, ambos exalando juventude. Eles são pais de um menino que se recusa a falar. O filme alterna as cores e o preto e branco conforme surgem momentos do passado do casal na capital e do presente no interior. Boa saída para o inconveniente da interrupção da filmagem por três anos. Os Beatles e Roberto Carlos estão presentes mais uma vez, além de outros artistas que faziam sucesso na virada dos 60 para os 70. É especialmente forte a maneira como Siqueira se apropria de cacos (recortes de jornais e revistas, trechos diversos de textos, de músicas, de outros suportes fílmicos, capas de discos) para construir uma representação estilhaçada de uma história de amor, com fatos que marcaram cada época (1970 e 1973). É uma espécie de Matão S/A, já que a esposa acompanha seu marido numa viagem de recomeço.

Normalmente, o vai e vem de tempos surge para encobrir dificuldades com o desenvolvimento da trama. Não é o caso aqui, além da necessidade de retomar o filme anos depois. Talvez Siqueira não fosse capaz de resolver dificuldades surgidas em um filme mais narrativo. O mais provável, contudo, é que ele nem quisesse. A época era de radicalização, de expandir a modernidade cinematográfica até onde fosse possível a partir dos moldes da nouvelle vague francesa e do neorrealismo italiano, do cinéma vérité e do cinema direto, do free cinema e do próprio cinema moderno brasileiro. Não é por acaso que na estrada apareça uma placa com a palavra LIMITE, assim mesmo, em maiúsculas. Questão de filiação. A geração de modernistas a qual pertence vai recuperar o cineasta que a geração anterior, a de Glauber Rocha, deixou de lado: Mário Peixoto.

É Luiz Felipe Miranda que informa, em seu Dicionário de cineastas brasileiros, de 1990, que o filme ficou três anos parado. Sendo um filme de 1974, mas que aparenta a bifurcação entre o cinema novo mais radical e o fortalecimento do cinema marginal do começo da década de 1970, é natural que o filme transborde algo de ressaca, que faz dele ao mesmo tempo datado e muito especial (e provavelmente especial por ser datado). Imagino até que as imagens coloridas são posteriores à interrupção, com Wilker já cabeludo, e as imagens em preto e branco sejam do início da década.

Em 1974, o cinema brasileiro começava a desabrochar industrialmente, graças à Embrafilme. Isto não quer dizer que alguns filmes, especialmente os que não eram produzidos ou distribuidos pela estatal, deixassem de ficar num limbo, quase invisíveis em sua época e nos anos futuros.

Amor e Medo é um dos filmes invisíveis. Dele pouco se falou, pouco se escreveu. É também um típico primeiro longa, um amontoado de ideias que precisam caber em menos de uma hora e meia. Siqueira mostra a convulsão do mundo no fim dos sixties e o reflexo disso (a ressaca) nos seventies. No Brasil, uma ditadura estava em curso. O refúgio é a arte. José Wilker é um cineasta fracassado. Porque é poeta. Fez também filmes “para ganhar dinheiro”, como ele mesmo confessa, mas não deram muito certo. Siqueira brinca com seu alter ego na cena em que Wilker lê um texto sobre o promissor curta Ocorrência, que é do próprio Siqueira.

Na apresentação da Mostra, o texto diz que o filme foi exaltado por José Carlos Avellar, Jairo Ferreira e Carlos Reichenbach. Não lembro da exaltação de Avellar (aliás, não lembro de ter lido algo sobre Siqueira, a não ser o que está no catálogo da mostra de cinema marginal do Eugenio Puppo), mas acredito e fico feliz que tenha acontecido. As do Jairo e do Carlão são compreensíveis. Tudo a ver com os filmes que eles fizeram.

Papo de Anjo (1974)

Um filme que se passa dentro de uma orelha. Filme de colagens parecido com os que Luiz Rosemberg Filho faria nos últimos anos de sua vida. Siqueira era mais lírico, chegando na política pela poesia. Rosemberg procurava a política diretamente, de maneira afrontadora, como era de sua personalidade.

Pequena História do Mundo (1974)

Na mesma linha do curta anterior, com as mesmas técnicas e a mesma verve poética. Aqui, porém, me parece haver uma lógica estrutural mais interessante, uma maneira de contar a jornada do humano (na época se falava, “o homem”, no mesmo sentido de humano) rumo ao seu destino, que na verdade é uma volta aonde tudo começou. Um belo curta-anedota.

Sorrir (1974)

Outro da série de curtas de colagens feita em 1974, como se o diretor quisesse descansar da experiência de um longa com alguns divertimentos inconsequentes. Este é mais centrado em fotos de pessoas comuns, numa sucessão rápida entre as fotos em que estão sérias e as que estão sorrindo que provoca a mesma mentira do cinema: imagens estáticas que dão a ilusão de movimento.

Hamlet (1975)

Novo curta de colagens. Fotos com animações. Ozualdo Candeias chamou o seu Hamlet de A Herança, então podemos dizer que o melhor filme chamado Hamlet entre os feitos no Brasil é este curta de seis minutos de puro imaginário. Fala do filho da mulher-aranha com o homem-mosca. Sua mãe amava tanto o seu pai que o engoliu inteiro para ficar sempre com ele. Imaginação sem freios.

Close Up (1975)

O tique-taque de um relógio, uma foto de uma mulher com seu filho e um cachorrinho, uma descrição minuciosa de alguns objetos de quarto, o desfocar. Corta. Câmera em outro cômodo. Um gemido e sons de pássaros ao fundo. Um copo com água e um frasco de remédio. Ruptura em relação aos curtas anteriores. Filme de intimidade, de decadência e cotidiano. Tão forte quanto Hamlet porque tão diferente de tudo que JRS tinha feito até então enquanto Hamlet era justamente o ápice do que ele vinha fazendo desde o longa.

Sonho de Glória (1975)

Usado no fundo do palco de Elis Regina durante os shows da turnê Falso Brilhante. Curta no início onírico, psicodélico, daria um bom clipe para alguma canção de rock progressivo. Depois entram as colagens. Um retorno a 1974.

À Estrela Dalva (1976)

A qualidade da imagem é inferior a dos outros filmes. É outro curta de colagem, aqui em homenagem à cantora Dalva de Oliveira.

Kitsch Nº1 (1980)

Segundo a data que consta na programação, este filme foi exibido pela primeira vez quatro anos depois do curta anterior. Um homem relembra momentos íntimos com seu grande amor, com a música de Roberto Carlos (“Outra Vez”, do disco de 1977), trilha de muitos amantes da época. Ou melhor, música da Isolda, na interpretação magnífica do Rei.

E aqui vai o link para a programação no site da Cinemateca: