O medo das hierarquizações

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Desde a premiação do Festival de Brasília, em 2014, quando os participantes resolveram, de antemão, dividir o dinheiro destinado aos premiados, tenho notado que um número considerável de pessoas considera nocivas as hierarquizações de filmes.

Prática comum à cinefilia, estava estampada em publicações francesas desde os anos 1940 (La Revue de Cinéma, Cahiers du Cinéma, Presence du Cinéma, Positif). A L’Écran Français hierarquizava os filmes com as feições de um minotauro no lugar das estrelas, algo bem infantil, e tinha espaço para o texto seminal de Alexandre Astruc, “La Camera Stylo“, espécie de manifesto usado pela Nouvelle Vague anos depois. A revista japonesa Kinema Junpo se notabilizou pelas listas anuais de melhores filmes japoneses, frequentes desde os anos 1920 (Kenji Mizoguchi estava quase sempre presente, mas apenas uma vez, em 1937, na primeira posição, o que não diminui sua estatura de maior cineasta de todos os tempos ao lado de John Ford). A BFI realiza, de dez em dez anos, enquetes com diretores e críticos do mundo todo para elencar os filmes favoritos de todos os tempos. Discordamos ou não da lista geral (impossível não discordar), é sempre uma diversão ver quais filmes subiram ou desceram nesse panteão duvidoso, e mais divertido ainda é ver as listas individuais, principalmente de cineastas e críticos que admiramos.

Mas para alguns, essas listas hierarquizantes não deveriam existir. Porque todos os filmes têm seu valor, suas peculiaridades. Premiações, então, seriam criminosas, pelo que têm de excludentes. Engraçado, muito mais grave é a seleção de filmes que receberão patrocínio para existirem, mas não vejo tanta gente protestando contra isso.

Dizer o que é bom e o que é ruim, que X é melhor que Y, e que Z não merece figurar na história do cinema é uma das funções da crítica. Se todos os filmes precisassem de igual tratamento, de particularizações, de serem entendidos por sua proposta e outras relativizações, e se não houvesse generalizações o mundo do cinema não respiraria melhor. Filmes são obras fechadas que podem ser vistos e entendidos de forma aberta. Ao contrário das pessoas, que são organismos vivos e infinitamente mais complexos. Por isso não se pode aplicar aos filmes o mesmo sentimento inclusivo e democrático que desejamos à sociedade.

Tendo visto apenas uns vinte filmes japoneses, André Bazin fez uma das melhores análises do cinema japonês que conheço. Essa generalização está em O Cinema da Crueldade. Bazin fazia generalizações negativas também, e são as negativas, e só elas, que provocam a ira de quem diz que não se deve generalizar.

Hierarquizações e generalizações são aparatos da cinefilia e da crítica. Sem elas é possível, obviamente, fazer boa crítica. Mas a questão é que com elas também, e por vezes com maior profundidade. Claro que a maior parte das hierarquizações e generalizações de hoje são ofensivas ao bom senso (como esta lista aqui, um tiro no pé). Isso não é culpa da prática em si, mas da pobreza que tomou o mundo artístico com a ideia de interatividade.

8 Respostas

  1. Esta lista do cinema brasileiro é realmente de muito mau gosto.

  2. Não entendi o problema com a lista de filmes nacionais. Apesar de discordar dela, vejo méritos, e não algo “ofensivo ao bom senso.”

    1. Julio, tenho muitos problemas com uma lista que se intitula desse jeito, “22 filmes para ver e nunca mais falar que cinema nacional não presta” (título totalmente ofensivo ao bom senso), e tem pelo menos cinco filmes que não prestam (e que são ofensivos ao bom senso) – Nina, O Cheiro do Ralo, Amarelo Manga, Linha de Passe e Estômago – além de alguns outros que não têm importância alguma para a história do cinema. E nos clássicos, só escolhas óbvias.

      1. Devo discordar de você. A lista, se intitulada, “os melhores filmes brasileiros de todos os tempos, ou desde a Retomada, ou etc”, poderia ser cobrada pela importância ou não de alguns filmes assinalados ou omitidos. Como vejo a lista direcionada para um público que vê o cinema nacional como estranho, como ruim, como sem história, não vejo mal nenhum no título. E por mais que questione a presença de alguns títulos, como o próprio Nina que você mencionou, acho ofensivo ao bom senso um crítico simplesmente dizer que o filme apontado na lista alheia não presta, por mais argumentos que ele apresente, já que listas passam por uma apuração pessoal que vai além de qualquer detalhe técnico. Você mesmo apontou Mizoguchi como maior cineasta de todos os tempos, ao lado de Ford, sendo que não o considero acima nem de seus conterrâneos Ozu e Kurosawa. E por mais que entenda toda a contribuição dele como cineasta, toda a riqueza de sua mise en scene, como aponta Bordwell, não tem nenhum filme dele que me afetou tanto quanto Viver ou Contos de Tóquio. E por mais que você aponte isso como contrário ao bom senso, não tem como medir minha apreensão da obra como público. Você, como crítico, pode até discordar ou argumentar sobre minhas escolhas ou com a de outros, desde que objetive o diálogo entre as obras e as listas de cada um, e não apenas a exaltação a um pensamento comum, na qual o crítico e mais 20 iluminados detém a verdade fílmica-universal, o que muitas vezes enxergo em parte da crítica de cinema no Brasil.

      2. Não entendi o que Mizoguchi, Ozu e Kurosawa, todos maravilhosos, tem a ver com a história.

        E se eu fizer uma lista qualquer (como sempre faço) e uma pessoa vier dizer que um filme de minha lista não presta, isso será ofensivo? Ah, dá um tempo…

  3. Isso é a “correção política” estendendo seus tentáculos. Esta matéria dá uma noção dos tempos atuais: https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/ha-livros-que-nos-podem-fazer-mal-1722455

    1. Sim… creio que isso seja em grande parte exagero do politicamente correto. Mas já tem gente chiando que não existe exagero no politicamente correto.

  4. Concordo

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