Anatomia da Crítica

northropfrye

Abaixo copio pequenos trechos do obrigatório Anatomia da Crítica (editora É Realizações), do crítico literário canadense Northrop Frye (1912-1991).

Dois sobre a necessidade da crítica:

O assunto principal da crítica literária é uma arte, e a crítica evidentemente também tem um pouco de arte. Isso soa como se a crítica fosse uma forma parasitária de expressão literária, uma arte baseada numa arte preexistente, uma imitação de segunda mão do poder de criação. Nessa teoria, os críticos são intelectuais que possuem um gosto pela arte, mas que carecem tanto da capacidade para produzi-la como de dinheiro para promovê-la, e então formam uma classe de atravessadores culturais, distribuindo cultura para a sociedade em troca de lucro próprio ao explorar o artista e aumentar a pressão em seu público. A concepção do crítico como um parasita ou artista manqué ainda é muito popular, especialmente entre os artistas. Essa concepção é às vezes reforçada por uma analogia dúbia entre as funções criativa e procriadora, de modo que ouvimos falar assim da “impotência” e “esterilidade” do crítico, de sua aversão a pessoas genuinamente criativas, e assim por diante. A idade de ouro da crítica anticrítica foi a parte final do século XIX, mas alguns de seus preconceitos ainda ficaram por aí.

(…)

Shakespeare era mais popular que Webster, mas não porque ele era um dramaturgo melhor; Keats era menos popular que Montgomery, mas não porque fosse um poeta melhor. Consequentemente, não há maneira de evitar que o crítico seja, por bem, ou por mal, o pioneiro da educação e o formador da tradição cultural. Qualquer que seja a popularidade que Shakespeare e Keats tenham hoje, ela é, em ambos os casos, o resultado da publicidade da crítica. Um público que tenta prescindir da crítica, e afirma que sabe o que quer e do que gosta, brutaliza as artes e perde sua memória cultural. A arte pela arte é um afastamento da crítica que redunda em um empobrecimento da própria vida civilizada. O único modo de se antecipar ao trabalho da crítica é por meio da censura, que tem a mesma relação com a crítica que o linchamento tem com a justiça.

E uma paulada na ditadura do tema:

Os axiomas e postulados da crítica, entretanto, devem brotar da arte da qual a crítica se ocupa. A primeira coisa que o crítico literário deve fazer é ler literatura, realizar uma pesquisa indutiva de sua própria área e deixar seus princípios críticos modelarem-se unicamente a partir de seu conhecimento dessa área. Os princípios críticos não podem ser tomados prontos da teologia, da filosofia, da política, da ciência ou de qualquer combinação dessas áreas.

7 Respostas

  1. Não me ocupo da censura clássica, pela obviedade da truculência que encerra. Todavia, não é raro, que textos escritos e divulgados por críticos, ao longo da história, produziram efeitos semelhantes aos de uma censura não autoritária, isto é, resultaram em linchamentos.

    1. concordo… mas nem sempre por causa do crítico.

      1. Se me permite complementar, o texto é interessante e traz algumas considerações para a reflexão, especialmente, a meu juízo, quando previne que a arte pela arte, um clube fechado, de fato, redunda em um empobrecimento do processo civilizatório. Precisa ser arejado. Porém, vamos registrar que todo a transcrição de Frye está ancorada na crítica literária. Cuidei, para não tentar não empobrecer a conversa, de estender as considerações do autor para os campos do entretenimento, grande parte sem compromisso educacional. Literatura é coisa séria, Não confundir com séries de TV.

      2. Como o pessoal parece não estar muito envolvido com o tema, sem monopolizar, vou me estender, para aproveitar o teu viés de crítico de cinema e professor. Se morasse em São Paulo estaria em um dos teus cursos, tenha certeza. Gosto tanto de cinema que comecei com 10 anos. Sozinho, pelas salas mais baratas. Hoje, coleciono. São quase três mil filmes. Todos originais. Bem, e daí? Sempre tenho dúvidas quanto a esta sétima arte, expressão criada lá pelos 1920, obviamente por um crítico de cinema. As artes eram só seis. Hoje já passam de 10, ou mais. Passados 60 anos continuo com dúvidas se cinema é cabeça e/ou lazer. Por exemplo. Cinema arte “versus” cinema entretenimento. São diferentes? Ou um hipotético “arte pela arte” para os iniciados? Sem ventilação, para os desafortunados da loteria genética. Godard para Higienópolis e bangue-bangue para o resto? Exemplifico. Essa semana assisti do Monicelli “As duas vidas de mattia pascal”, inspirado, livremente, em Pirandello. Ótima crítica de costumes. Me senti um gênio. Todavia, uns dias antes, para, gostosamente passar o tempo, olha eu vendo uma série de tv, antiga com o Tom Selleck. Roteiro de Robert B. Parker. Uma cena, entre o delegado bêbado e o analista que o atendia, esporadicamente, me chamou a atenção pelo diálogo de grande qualidade freudiana. Isto posto, sem nenhuma agenda oculta, pergunto a você, para compreender melhor a tal da sétima arte?
        – Cinema é arte mesmo?
        – Há diferença entre cinema arte e cinema de entretenimento?

        Crítico de cinema pode dar resposta positiva a seguinte conclusão da Professora Doutora da USP, Cláudia Mogadouro:

        ” O cinema independente de sua nacionalidade, orçamento e concepção, é comercial e artístico ao mesmo tempo. É possível aliar entretenimento e arte, diversão e ampliação do repertório cultural. Por isso mesmo, os filmes são potencialmente educativos. Quando pensamos em cinema e educação a mediação do educador é que faz a diferença. pois permite transformar os filmes que também visam o lucro em narrativas transformadoras”.

        O crítico é um educador, ou deve acumular ser professor?

        Um abraço.

      3. Impossibilitado de dar as respostas que as perguntas merecem, adianto que, para mim, cinema é arte, sim, podendo ser entretenimento ao mesmo tempo (ainda que as noções de arte e entretenimento normalmente apareçam embaralhadas e distorcidas). Um exemplo recente, entre muitos: Tropas Estelares. Sobre as palavras da Mogadouro, concordo com elas, apesar de achar que a segunda parte tem suas armadilhas aí, e na primeira eu trocaria o “é comercial e artístico ao mesmo tempo” por um “pode ser…”.

  2. Sérgio, em relação à crítica de cinema, tu poderias listar 10 críticos fundamentais e seus livros/escritos essenciais? Gosto muito das suas críticas e acompanho os teus blogs há um certo tempo. Você não tem interesse em publicar um livro de críticas no futuro?

    1. Emerson, talvez eu faça um post sobre isso. Sobre o livro, até teria se viesse algum convite. Para eu correr atrás, não, pois eu teria livros já começados para lançar antes de algum modo.

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