A decadência

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Violência e Paixão (1974), de Luchino Visconti

Muitos não entendem minhas comparações entre música e cinema, como a que fiz certa vez entre Roberto Carlos e Kenji Mizoguchi (sei que fez muito sentido para quem adora os dois, mas não para quem olha torto para o cantor popular, ou não entende a emoção que Mizoguchi pode despertar). Talvez porque seja mais nobre, embora óbvio, comparar filmes com quadros, uma vez que o cinema herdou algumas coisas da pintura. Música é outra coisa. Mais direta, mais certeira, chega mais rápido ao coração. Por vezes, algumas ideias que tenho, boas ou tolas, vêm da audição de músicas que me dizem muito, me tocam diretamente o coração.

Aconteceu novamente numa tarde dessas, quando procurei disfarçar o barulho dos vizinhos com algumas músicas de bandas de rock dos anos 70: Fantasy, Cressida, Gentle Giant, Wings, Zappa, até que cheguei ao Kansas, banda prog/AOR que lançou discos muito bons entre 1975 e 1979. O disco Monolith em especial, último desse período, me trouxe de volta a percepção de que me sinto especialmente atraído pela decadência, pelos últimos suspiros de algo que já está se acabando, pelo debate contra uma correnteza que está prestes a levar tudo embora. É inevitável, nesse caso, ter-se consciência dessa decadência. Isso na arte, claro. Na vida a coisa é diferente porque a decadência é triste, seja do corpo, da mente, de uma ideia de nação ou do respeito entre as pessoas (tudo que estamos vivendo, em suma). E é essa tristeza que me encanta, me enfeitiça, uma tristeza que eu não quero passar, e que talvez seja melhor traduzida por melancolia, pois mais profunda, aparentemente sem solução fácil, mas que me leva a emoções profundas quando representada na arte. Na música fica evidente: os últimos românticos têm esse tipo de melancolia exacerbada: as últimas obras de Brahms e Mahler, por exemplo. O rock da segunda metade dos anos 70 também, pelo menos o que não é punk ou new wave. O disco símbolo dessa decadência apaixonante é In Through the Outdoor, último do Led Zeppelin, justamente de 1979. Mas só uma banda desse tamanho é capaz de criar algo assim.

No cinema, essa minha atração pela decadência explica, por exemplo, por que Fassbinder (Num Ano Com Treze Luas, O Desespero de Veronika Voss), Visconti (tudo desde Os Deuses Malditos), Fellini (quase tudo desde A Doce Vida), o Max Ophuls dos anos 50, Saraceni (A Casa Assassinada) e alguns Zurlinis me dizem tanto, sendo capazes de me deixar numa espécie de transe. Italianos e alemães entendem de decadência, aliás. É o que me encanta também no odiado Evita, de Alan Parker. É um musical que reflete em tudo a decadência de uma ideia de cinebiografia tipicamente hollywoodiana, setentista e oitentista, na linha Gandhi, mas temperada por números musicais à Broadway das mesmas décadas (Andrew Lloyd Weber e Tim Rice), cantados por Madonna, Antonio Bandeiras e Jonathan Pryce (o saudoso amigo Francisco Conte, outro que era fascinado pela decadência, também se encantava com esse filme). E é o que salva La La Land da mediocridade, a meu ver: se Chazelle tivesse uns trinta anos a mais e inúmeras desilusões na conta, teria feito um ótimo filme decadentista no lugar do escapismo simpático que apresentou.

4 Respostas

  1. Texto primoroso e delicioso de se ler.

    1. obrigado, Declieux.

  2. O Chazelle ainda tem que quebrar muita pedra até atingir o sentimento pleno. Mas ele sendo endeusado e premiado tão cedo assim é uma barreira para essa jornada. Sobre música, estava ouvindo os maravilhosos Sunflower e Surf’s Up dos Beach Boys nesses dias, e justamente, pensando na sensações de perda, fracasso e desilusão pelas quais passavam cada um dos integrantes originais da banda.

    1. Sunflower, se bobear, é meu preferido deles. Tinha em vinil importado. Ouvia direto. A mudança de gravadora (foram para a Reprise) fez muito bem para eles.

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