Um Limite Entre Nós

fences

Há cortes excepcionais em Um Limite Entre Nós. Um deles ocorre enquanto Rose (Viola Davis) e Troy (Denzel Washington) têm uma discussão séria: a câmera repentinamente abandona Rose enquanto ela está saindo da casa para enquadrar Gabe, o irmão deficiente mental de Troy, que tinha ido segundos antes para a sala. Na volta, Rose já está no quintal da casa, chorando em bicas, pronta para a segunda etapa da discussão. É um momento rápido, simples, mas que revela uma enorme sensibilidade de Denzel Washington como diretor, aqui em seu terceiro longa-metragem. Mostra como Rose e Troy são especiais, mesmo Troy, um furacão destrutivo, e influenciam todos ao redor.

Em momento semelhante, numa outra discussão, Rose discute com seu filho Cory, e o corte nos leva à cozinha, onde Lyons, filho de Troy com outra mulher, escuta pensativo a discussão. Não é só o fato de existir esses cortes que impressiona, mas a precisão com que eles são feitos e a duração dos planos com o irmão de Troy na sala e com o meio-irmão de Cory na cozinha. Mostram que, de certo modo, Troy é algo que Gabe não pode ser, e que Cory se tornou o que não queria ser, ou seja, parecido com Troy, seu pai.

O filme tem sido tratado, um tanto preguiçosamente, por teatro filmado, como se o cinema, em sua gênese, não fosse exatamente isso, sendo ao mesmo tempo algo totalmente diferente (porque, afinal, é filmado) e como se grandes diretores, de formas e intensidades das mais diversas, de Sacha Guitry a Carmelo Bene, de Raoul Ruiz a James Gray, de Jean Renoir a Manoel de Oliveira, de Jacques Rivette a Woody Allen, entre muitos outros, não fizessem brilhantes teatros filmados em suas carreiras. Pois Um Limite Entre Nós é um pequeno brilhante teatro filmado. Melhor dizendo, é cinema, porque nele os cortes são certeiros, ao contrário dos cortes burocráticos que vejo na maioria dos filmes lançados por aqui, e os planos quase sempre duram o suficiente para que as emoções surjam (dos personagens e dos espectadores). Certamente é o filme mais forte entre os nove indicados ao prêmio máximo da academia.

Ultimamente tem-se confundido direção com pirotecnia, com mobilidade intensiva da câmera e outros exibicionismos. Nisso Damien Chazelle e Barry Jenkins dão um show, para o bem e para o mal (quero dizer que às vezes funciona, mas não sempre, não frequentemente em seus filmes). Mas ser diretor é também permitir que a emoção se extravase sem artimanhas, que o sentimento seja exacerbado sem que se chegue na chantagem emocional. É acertar tempos e distâncias, tons e intensidades. O diretor também controla essas coisas, limpa arestas, impede que limites sejam cruzados, permite que o ator dê o seu melhor e que o texto seja valorizado.

Fazer melodrama não é fácil. Trabalha-se com uma faixa de leitura muito pequena, localizada entre o distanciamento cauteloso de um lado e a breguice desmedida de outro, e essa faixa é difícil de ser alcançada, e mais difícil ainda de não ser ultrapassada. Em vários momentos Denzel consegue se manter dentro dessa faixa. E nesses momentos, seu filme fica grande, como raros o são atualmente.

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P.S. Sei muito bem que é delírio de minha cinefilia, e longe de mim comparar os diretores em questão, mas dois momentos do filme de Washington me levaram a lembrar emocionadamente de filmes bem diferentes:

a) quando Rose fala porque se casou com Troy me lembrei do monólogo da esposa no final de Stalker;

b) quando o céu se abre ao toque frouxo da corneta me lembrei da cena em que um homem acende a iluminação da rua no exato momento em que a noiva aceita acompanhar o futuro marido em uma missão ingrata em Com Um Pé no Céu, de Irving Rapper.

7 Respostas

  1. Alexandre Russiano Mendes | Responder

    Senhor Sérgio, Bom dia!

    Desculpe a pergunta fora de contexto, mas aproveitar que o senhor citou o Damien Chazelle e vou perguntar: o senhor acha que La La Land resiste ao teste do tempo? Não necessariamente como um grande clássico, mas como um bom filme ?

    Muito obrigado pela atenção. Aprecio cada vez mais tudo o que escreve.
    Alexandre

  2. Ok, também gostei do filme. Principalmente da segunda metade. Você não acha que justamente a primeira metade é marcada por monólogos muito longos do personagem principal? Quando penso que o filme se parece com uma peça é menos pela ambientação, quase todo no quintal, e mais pela interpretação de Denzel, carregada, e seus longos discursos, que se numa peça de teatro, olhando para o público, funcionam, no filme, em alguns momentos até cansou, não acha?

    1. Não acho. Adorei a primeira sequência.

    2. Tive a mesma sensação. O primeiro diálogo, voltando do trabalho é excessivamente longo. Achei bom por um lado pois dá toda uma construção do personagem, mas exige muita atenção do público. Vou ter que assistir uma vez mais somente esse pedaço pra poder pegar um monte de detalhes que com certeza deixei de pegar em meio a conversa.

      1. vale rever. sou suspeito, porque curto um teatro filmado. Mas é uma primeira sequência já impressionante, e o filme não cai daí em diante.

  3. fences é muito bom e ainda acham ‘poréms?

    1. Poréns todo filme tem. O problema é que ficam com essa bobagem de ser teatral.

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